Necessidade de estabilizar aquecimento da Terra em 1,5ºC impõe deixar a maior parte dos fósseis no subsolo, o que inclui o gás

Ao longo dos últimos anos, a indústria do gás natural vem se esforçando para convencer empresários e consumidores a investir no que chama de um “combustível de transição” para uma economia de baixo carbono. A explicação é que esta seria uma alternativa mais barata e limpa, já pronta para ser adotada em grande escala enquanto as energias renováveis não entram maciçamente na matriz. Nos Estados Unidos, por exemplo, o American Petroleum Institute está promovendo, desde janeiro, uma forte campanha que descreve o gás natural como “limpo” e “amigo do ambiente”. No Brasil, em setembro de 2020, a Câmara dos Deputados aprovou, após mais de cinco anos de tramitação, um projeto de lei que pretende fomentar a indústria do gás natural (GN) no país. Essa aceleração no processo é consequência, também, do programa Novo Mercado de Gás, lançado pelo governo em 2019 e que visa reduzir preço do insumo e incentivar o aumento de investimentos no setor. As iniciativas preocupam a comunidade científica, pois as alegações sobre os benefícios ecológicos do combustível não se sustentam.

É verdade que o gás natural, quando queimado, emite cerca de 40% menos CO2 do que o carvão para uma quantidade equivalente de energia fornecida. O gás também é provavelmente o maior responsável pela queda nas emissões de CO2 dos Estados Unidos, maior produtor mundial – seu barateamento nos últimos 15 anos levou à substituição maciça de usinas termelétricas a carvão por usinas a gás. No entanto, há pelo menos três pontos que demandam cautela sobre o gás. O primeiro é que este também é um combustível fóssil e é composto principalmente por outro gás de efeito estufa, o metano, 28 vezes mais potente que o CO2, que é liberado na atmosfera à medida que o produto é desenvolvido e usado. Professor do Departamento de Ecologia e Biologia Evolutiva da Universidade Cornell, Robert Howarth explica que “alguma quantidade de metano é emitida durante cada etapa de desenvolvimento, processamento, transporte, armazenamento e distribuição de gás natural aos consumidores”, e isso varia principalmente de acordo com o local onde o gás se encontra no subsolo e também com a tecnologia aplicada para sua extração.

Tanto o metano quanto o dióxido de carbono são causadores do aquecimento global. No entanto, esses gases se comportam de maneira distinta. Em um artigo publicado em 2012 na revista Science, pesquisadores explicam que o sistema climático responde de forma muito mais rápida às emissões de metano que às de CO2. Consequentemente, a redução do metano diminuiria de forma mais significativa e rápida a temperatura global, enquanto a diminuição das emissões de CO2 demoraria décadas para trazer os mesmos efeitos. A indústria do gás natural tem um efeito direto nessa questão, pois ela é, junto com os arrotos do rebanho bovino, a decomposição de biomassa em pântanos e manguezais, uma das principais causas das altas concentrações desse gás na atmosfera.

Para avaliar de forma mais direta o seu impacto, Robert Howarth, juntamente com outros pesquisadores, publicou em 2011 um estudo em que estima os possíveis efeitos e a quantidade de metano que é emitida tanto pelo gás convencional como pelo não-convencional. Nesta pesquisa, deram destaque à análise da extração do gás de folhelho, que passou a dominar a produção desse tipo de combustível nos Estados Unidos. Nas conclusões do estudo, corroboradas por diversas pesquisas feitas posteriormente, os pesquisadores sugerem que a pegada de gases de efeito estufa do gás natural convencional e não-convencional pode ser pior que a do carvão, quando a quantidade de emissões de metano é considerada e comparada com a emissão de dióxido de carbono em um período de 20 anos após a emissão. De fato, um estudo publicado recentemente na revista Nature mostrou que as emissões de metano na atmosfera vêm aumentando de forma significativa, e que isso é resultado da ação humana – em especial da indústria de gás natural.

O segundo ponto que afasta a ideia de o gás natural ser ambientalmente menos prejudicial é a sua principal forma de extração, chamada de fraturamento hidráulico ou fracking, que já foi adotada em larga escala em países como Estados Unidos e China. Essa técnica de perfuração do solo difere das tradicionais porque permite acessar minúsculas bolhas de gás num tipo de rocha sedimentar muito comum chamada folhelho e, consequentemente, explorar reservatórios que antes eram inacessíveis. Só que, para chegar lá, em cada operação são inseridos nos buracos água, areia e centenas de substâncias químicas, algumas bem tóxicas, que ajudam a dar a pressão necessária para fraturar a rocha e, assim, liberar o gás. Esse é considerado um dos processos para extração de gás que mais resultam em “vazamento” de metano, explica Robert Howarth. Já existe uma tecnologia que permite capturar parte desse gás para vende-lo posteriormente. No entanto, a operação é cara e reduz a velocidade de “acabamento” (que é o processo de deixar um poço pronto para a produção), e por isso não é vista com entusiasmo pela indústria.

Em 2015, a Agência de Proteção Ambiental (EPA) dos Estados Unidos publicou as primeiras regulações federais sobre a emissão de metano, exigindo, entre outras coisas, que ele seja capturado quando tecnicamente possível, principalmente durante as operações de fracking. No entanto, a eficácia dessa regulamentação não tem sido avaliada de forma independente. Além disso, o governo Trump vem buscando tornar essas regras cada vez mais flexíveis. De acordo com o ecólogo catalão Pep Canadell, da Csiro (Agência Nacional de pesquisa científica australiana), mesmo com os esforços para o desenvolvimento de tecnologias menos danosas, já foi constatado, em algumas regiões dos EUA, que a taxa de vazamento durante extração, processamento e transporte do combustível é tão alta que ele acaba causando tanto dano ambiental quanto o carvão ou até mais. O fracking, apesar de ser amplamente utilizado em países como Estados Unidos, Canadá e China, é tão polêmico que já foi banido em locais como Irlanda, França, Alemanha e Bulgária. No Brasil, alguns estados e municípios já aprovaram leis de proibição de forma preventiva. Muitas delas, no entanto, são temporárias.

A terceira questão que envolve o gás natural diz respeito à própria narrativa criada para justificar seu uso, que não se sustenta mais. A ideia de que este poderia ser um “combustível de transição” para uma matriz 100% renovável surgiu há mais de duas décadas, quando empresários e lideranças – entre elas os presidentes americanos George W Bush e Barack Obama e os brasileiros Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva-, passaram a defender que era possível continuar usando combustíveis fósseis “menos agressivos ao meio ambiente” para ir gradualmente reduzindo as emissões de gases de efeito estufa até que fosse possível uma transição completa para energias renováveis. Nessa lógica, o incentivo ao gás natural representaria a última etapa do ciclo da energia fóssil, constituída também pelo carvão e pelo petróleo.

Só que o cenário mundial das mudanças climáticas mostrou que o aquecimento global está ocorrendo mais rápido do que o previsto, e especialistas passaram a defender que, para limitar o aumento da temperatura global a 1,5oC, – a meta mais ambiciosa do acordo climático de Paris de 2015 -, as emissões devem ser reduzidas a zero até 2050, o que não deixa quase espaço para uso de combustíveis fósseis de qualquer tipo. “Essa ideia (de um combustível de transição) era uma questão de décadas atrás, mas agora que sabemos que precisamos reduzir a zero emissões de gases de efeito estufa, precisamos adicionar apenas energia renovável ou tecnologias de emissão zero para alcançar a meta, não podemos pensar mais nesse estágio intermediário”, explica Canadell.

De fato, em um estudo publicado em 2015 na revista Nature, dois investigadores do University College de Londres apresentaram uma análise detalhada sobre o quanto ainda poderia ser explorado das reservas de combustíveis fósseis se o mundo quisesse travar o aquecimento do planeta. Eles concluíram que, mesmo com a disseminação das tecnologias de captura e armazenamento de carbono – ou seja, recolher o CO2 das chaminés e enterrá-lo no subsolo –, um terço do petróleo, metade do gás e mais de 80% do carvão existentes nas reservas a nível global teriam de ser deixados no subsolo. Para chegar a esses resultados, os pesquisadores avaliaram a diferença entre a quantidade de gases com efeito de estufa que seria libertada se todas as reservas de combustíveis fósseis fossem utilizadas e o máximo que se pode ainda lançar na atmosfera para que a temperatura da Terra não suba acima de 2oC até o final do século.

Só que, de lá para cá, a indústria tem agido no sentido contrário. “A maior parte da nova produção de gás não está suplantando o carvão – está complementando-o. Está respondendo à demanda por nova energia”, explicou à agência Reuters o presidente do Global Carbon Project, Rob Jackson, da Universidade Stanford, nos EUA. De acordo com Pep Canadell, conforme as usinas a carvão estão se tornando ineficientes e caras, a indústria está buscando se aproveitar da grande quantidade de gás natural disponível na Terra para extrair e vender, o que acaba afastando o propósito inicial de reduzir o impacto ambiental. “Se tivéssemos cem anos disponíveis para descarbonizar, talvez [o gás natural] fosse um ótimo combustível ponte entre o carvão e as renováveis. Mas não temos cem anos, temos cerca de 30 anos no máximo.”

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