Texto menciona créditos florestais inexistentes e meta que o próprio governo suprimiu

“Verba volant, scripta manent”. Na última quarta-feira (14), pressionado pelo governo americano às vésperas da cúpula ambiental convocada por Joe Biden para 22 de abril, Jair Bolsonaro deu uma de Michel Temer e fez uma carta com um monte de coisa escrita O destinatário é o presidente americano, de quem Bolsonaro espera um cheque nos próximos dias a título de cooperação contra a mudança climática.

Em sete páginas que parecem não ter passado por uma revisão, o presidente brasileiro tentou vender seu governo como ambientalista. O resultado foi um “Bolsonaro-as-usual”: uma extensa lista de distorções, omissões e mentiras sobre temas que vão de proteção da floresta a supostos créditos de carbono.

O presidente clamou para si resultados da gestão ambiental dos governos petistas, omitiu o desmonte ambiental realizado por seu ministro Ricardo Salles e se comprometeu com uma meta de redução de desmatamento que seu próprio governo deletou da promessa feita à ONU no âmbito do Acordo de Paris.

A seguir checamos os principais pontos do correio para Joe Biden.


 

“Reitero o compromisso do Brasil e de meu governo com os esforços internacionais de proteção do meio ambiente, combate à mudança do clima e promoção do desenvolvimento sustentável (…) queria compartilhar com Vossa Excelência o que o Brasil tem feito pela conservação do meio ambiente”

NÃO É BEM ASSIM

O desmatamento na Amazônia aumentou 34,5% em 2019 (a maior elevação percentual no século) e 9,5% em 2020 (o maior número absoluto em 11 anos). Desde 2008 não eram registradas taxas de desmatamento acima de 10 mil km2. Em dois anos foram destruídos 21,2 mil km2 de floresta, área equivalente à de Israel.

Dados divulgados pela Global Forest Watch mostram que o Brasil liderou mais uma vez em 2020 a destruição de florestas primárias no mundo, desmatando 3,5 vezes mais que o segundo país da lista, a República Democrática do Congo.

Sob Bolsonaro, o Brasil retrocedeu sua atuação no combate à mudança do clima, justamente por causa do aumento do desmatamento.

Segundo o Sistema de Estimativas de Emissões do Observatório do Clima (SEEG), o Brasil lançou na atmosfera 2,17 bilhões de toneladas brutas de dióxido de carbono equivalente (tCO2 e) em 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, um aumento de 9,6% em relação a 2018. É menos de 4% das emissões globais, mas isso torna o país o quinto maior emissor de gases de efeito estufa do planeta, atrás apenas da China (11,5 bilhões de toneladas), dos EUA (5,8 bilhões), da Índia (3,2 bilhões) e da Rússia (2,4 bilhões).

O dado mostra que a tendência de redução das emissões no Brasil, verificada entre 2004 e 2010, está se revertendo – em 2020, o país não cumpriu a meta estabelecida na Política Nacional sobre Mudança do Clima (PNMC). As emissões per capita do Brasil também são maiores que a média mundial. Em 2019, cada cidadão brasileiro emitiu 10,4 toneladas brutas de CO2e, contra 7,1 da média mundial.

“É evidente a magnitude dos esforços que a Nação brasileira realizou, através dos séculos, para preservar nosso patrimônio. Temos 60% do nosso território coberto por vegetação nativa. No bioma Amazônia, essa cifra ascende a eloquentes 84%. Destinamos mais de 30% do território nacional a áreas de proteção ambiental, e essas terras, somadas, correspondem a nada menos que 14% das áreas protegidas do planeta”.

IMPRECISO

Segundo relatório de 2020 da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), o Brasil reúne 12% das florestas do mundo, e não 14%. Somando Terras Indígenas e Unidades de Conservação, o Brasil tem 216 milhões de hectares sob proteção legal, o que representa 25% do território. Somente com a inclusão das Áreas de Proteção Ambiental (APAs), categoria que permite propriedades privadas, atividades econômicas e desmatamento, se chega a 259 milhões de hectares, cerca de 29% do país.

Em relação à Amazônia, dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que o desmatamento acumulado hoje corresponde a cerca de 20% da floresta, permanecendo 80% de pé, e não 84%. Ainda que a conta estivesse correta, isso não significa que toda a floresta remanescente está “preservada”, uma vez que há vastas extensões degradadas por atividades humanas. Ninguém sabe precisar quanto, mas um estudo de 2014 indicou que até 2013 havia 1,2 milhão de km2 degradados. Isso significa que 40% da Amazônia pode estar sob alguma pressão humana.

“O Brasil tem feito o mesmo no que diz respeito à transição energética. Temos, nesse domínio, uma das matrizes mais limpas do planeta: 46% de nossa energia é gerada por fontes renováveis, uma taxa mais de quatro vezes superior à média dos países da OCDE. Se computarmos apenas a energia elétrica, esse valor ascende a 82%, três vezes mais que aquele universo de países”.

VERDADE, MAS

O dado de 46% da energia gerada por fontes renováveis está correto (45% em 2019, segundo o site Our World in Data, com base nas estatísticas de energia da BP). Idem para energia elétrica. No entanto, não dá para falar em “transição energética”: a matriz brasileira é limpa por circunstâncias históricas, não por um esforço consciente de transição energética. O país não tem um plano de descarbonização da economia, não tem um plano de implementação de suas metas no Acordo de Paris e subsidia pesadamente combustíveis fósseis: R$ 99,4 bilhões apenas em 2019, segundo o Inesc.

“Nas grandes conferências das Nações Unidas sobre estes temas, o Brasil foi um dos promotores do conceito de desenvolvimento sustentável”

EXAGERADO

O conceito de desenvolvimento sustentável foi cunhado em 1987 por uma comissão internacional liderada pela então premiê norueguesa Gro Brundtland. Tem sido desde então a base de todas as negociações ambientais multilaterais. Não há nada especial na posição brasileira sobre o tema. Ao contrário, em 1972 o Brasil defendia na ONU a poluição como parte indissociável de seu direito ao desenvolvimento, posição que ecoa em nossa diplomacia até hoje.

“Em dezembro último, apresentamos à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC) uma atualização de nossa Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC). Nesse âmbito, comprometemo-nos a reduzir as nossas emissões de gases do efeito estufa em 37% até 2025 e em 43% até 2030, na comparação com as cifras de 2005”.

VERDADE, MAS

O governo está sendo processado por seis jovens ativistas por reduzir a ambição da NDC apresentada em dezembro. A nova NDC foi denunciada pelo Climate Action Tracker, que rebaixou a classificação da meta do país de “insuficiente” para “altamente insuficiente”. Por conta disso, o Brasil foi cortado do Climate Ambition Summit, a cúpula que celebrou os cinco anos do Acordo de Paris, em 12 de dezembro, com a presença de mais de 70 países. A condição para participar era a apresentação de metas mais ambiciosas.

A NDC é o documento em que cada país oferece suas estratégias e resultados para atingir o objetivo do Acordo de Paris de estabilizar o aquecimento global, e que deve ser atualizado e intensificado a cada cinco anos. A meta original do Brasil foi apresentada em 2015 na ONU pela então presidente Dilma Rousseff. O Brasil se comprometeu na ocasião a reduzir suas emissões de gases de efeito estufa em 37% até 2025, em relação aos níveis de 2005, e indicou que poderia chegar a 2030 com 43% de redução.

Nada disso estava condicionado a aporte externo de financiamento. A nova proposta de NDC confirma a meta indicativa para 2030. Não muda o compromisso percentual de corte de emissões, mas altera – e muito – a base de cálculo. Na nova proposta, o nível de emissões em 2005, ano-base da meta, foi ajustado de 2,1 bilhões de toneladas para 2,8 bilhões de toneladas. No anexo da NDC de 2015, a meta indicativa de redução de 43% significava emitir 1,2 bilhão de toneladas de gases até 2030. Na versão apresentada em 2020, a mesma meta representa 1,6 bilhão de toneladas na atmosfera. Ou seja: o Brasil chegaria a 2030 emitindo cerca de 400 milhões de toneladas de CO2 equivalente a mais do que havia sido prometido em 2015, segundo análise do Observatório do Clima. Para manter o mesmo nível absoluto de emissões indicado em 2015, o Brasil deveria ter ajustado a redução percentual da NDC para 57% com a mudança de metodologia.

“Embora seja uma das maiores economias do planeta, o Brasil ainda assim é responsável por apenas 1% das emissões históricas de gases do efeito estufa, e menos de 3% do total corrente de emissões globais. Adotamos metas absolutas de redução de emissões que superam as de muitos países desenvolvidos, que, no entanto, carregam muito maior responsabilidade pela mudança do clima.”

FALSO

A ideia de que o Brasil é um dos países que menos contribuíram para o aquecimento verificado vem de um estudo da década de 1990, feito por cientistas do governo brasileiro e apresentado pelo país na conferência de Kyoto, em 1997. Além de ser antigo, o dado da proposta original só levava em conta gás carbônico emitido por combustíveis fósseis. Desde o final dos anos 1970, porém, as emissões brasileiras são dominadas pelo desmatamento na Amazônia. Estudos posteriores têm mostrado um quadro bem diferente: em 2014, por exemplo, um grupo de cientistas calculou todos os gases e incluiu uso da terra e mostrou que o Brasil tinha a quarta maior contribuição histórica absoluta para o aquecimento global e a sétima maior contribuição per capita. Em 2015, o físico Luiz Gylvan Meira Filho, autor principal do estudo brasileiro original, mostrou no OC um cálculo revisado segundo o qual a contribuição histórica do Brasil para o aquecimento verificado em 2005 era de 4,4% se considerados todos os gases. Além disso, o discurso de que o país emite hoje apenas 3% do total mundial ignora que, mesmo assim, o Brasil é o quinto ou sexto maior emissor de gases de efeito estufa entre as 197 nações que integram a Convenção do Clima.

“Comprometemo-nos com o objetivo de longo prazo de alcançar a neutralidade climática em 2060 (…)”

FALSO

A nova Contribuição Nacionalmente Determinada do Brasil traz um “compromisso indicativo” de neutralidade climática. É algo bem diferente de um objetivo de longo prazo, porque não tem vinculação jurídica alguma – o governo não pode ser cobrado por isso. Além disso, o país até hoje não apresentou um plano de longo prazo de redução de emissões, algo que todos os países foram convidados a fazer pelo Acordo de Paris.

“Atualmente unidades produtivas com extensões superiores a 50 milhões de hectares (123,5 milhões de acres) já adotam tecnologias de produção de baixo carbono, como as que integram lavoura, pecuária e floresta. Já recuperamos 28 milhões de hectares (69,1 milhões de acres) de pastagens degradadas. E temos potencial para expandir essas tecnologias para mais 98 milhões de hectares”

MEIA-VERDADE

O governo nunca detalhou como chegou à cifra de 50 milhões de hectares, mas possivelmente ela incorpora todas as tecnologias de produção de baixa emissão de carbono – inclusive o plantio direto, adotado desde os anos 1990 (muito antes de o país ter qualquer meta climática), que já sozinho abarca 30 milhões de hectares.

O Plano Agricultura de Baixo Carbono (ABC), criado em 2010, foi responsável pela recuperação de 10 milhões de hectares de pastos degradados entre 2010 e 2018, aponta estudo da Embrapa publicado em junho de 2020 – e não 28 milhões, como aponta a carta de Bolsonaro.

O governo não tem como saber se essas práticas estão se revertendo em benefício para o clima, já que o país não monitora o ABC, nem computa nos seus inventários de emissões nem o carbono emitido por solos degradados, nem o sequestrado por pastagens bem manejadas. As emissões do setor agropecuário são crescentes, embora tenha havido avanços no sentido da sustentabilidade.

O Programa ABC, do Ministério da Agricultura, financia práticas agrícolas de baixa emissão. Mas ele corresponde a 1% do financiamento dado todo ano à agropecuária convencional. Nos últimos 10 anos foram disponibilizados em média R$ 1,7 bilhão por ano para o Plano ABC dentro do Plano Safra, que financia a agropecuária. O Plano Safra todo teve cerca R$ 170 bilhões por ano, em média.

“Reconheço, por exemplo, que temos diante de nós um desafio de monta, com o aumento das taxas de desmatamento na Amazônia, que vem se verificando desde 2012”.

VERDADE, MAS

Embora o desmatamento na Amazônia tenha uma tendência geral de alta desde 2012, no governo Bolsonaro ele mudou de patamar. A média entre 2012 e 2018 foi de 6.300 km2 por ano. Nos dois anos de governo Bolsonaro ela foi de 10.600 km2, uma alta de 68%. É consenso entre especialistas que o salto se deveu ao desmonte da governança ambiental no atual governo, com repetidos acenos ao crime ambiental, o engavetamento dos Planos de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia e no Cerrado e a redução do poder de ação do Ibama.

“Queremos reafirmar nesse ato, em inequívoco apoio aos esforços empreendidos por V. Excelência, o nosso compromisso em eliminar o desmatamento ilegal do Brasil até 2030”.

FALSO

O Brasil havia assumido essa meta no anexo da NDC, a meta do Acordo de Paris, em 2015. No entanto, ela foi retirada da nova NDC, apresentada em dezembro pelo ministro Ricardo Salles. A diferença é que agora o governo condiciona a redução do desmatamento ao recebimento de US$ 1 bilhão de dólares por ano, conforme declarou Salles ao Estadão. Parte desses recursos seriam usados para pagar diárias a policiais militares – criando uma espécie de “Ibama do B”, um órgão fiscalizador paralelo na Amazônia, enquanto os órgãos ambientais são escanteados.

“Alcançar esta meta, no entanto, exigirá recursos vultosos e políticas públicas abrangentes, cuja magnitude obriga-nos a querer contar com todo apoio possível (…) Nesse âmbito, naturalmente que o apoio do governo dos Estados Unidos, do setor privado e da sociedade civil americana, serão muito bem-vindos”.

DUVIDOSO

O Brasil reduziu a velocidade do desmatamento na Amazônia em 83% entre 2004 e 2012 sem exigir um centavo do exterior. O Fundo Amazônia, estabelecido em 2008, compensa o país por resultados já obtidos na redução do desmatamento. A Contribuição Nacionalmente Determinada do país, apresentada como meta nacional no Acordo de Paris em 2015, apresentou em seu anexo o objetivo de zerar o desmatamento ilegal em 2030, mas não o condicionou a aportes externos. Ao fazê-lo agora, Bolsonaro reduz a ambição dos compromissos nacionais, em violação ao Acordo de Paris.

“Como nós, os americanos saberão apreciar que as principais causas da degradação ambiental radicam na pobreza e na falta de oportunidades (…)”

FALSO

Os grandes desmatadores da Amazônia são fazendeiros, mineradores e grileiros de terras. Desmatar custa caro: de R$ 200 a R$ 2 mil por hectare derrubado. Produtores pobres, que só contam com a própria mão de obra, não conseguem abrir grandes áreas, aponta o pesquisador Raoni Rajão, da UFMG. Segundo ele, desmatamentos em blocos de até 6,25 hectares não superaram 7% da área desmatada total. Por outro lado, o culpado pelo aumento do desmatamento total nos últimos anos tem sido principalmente os blocos de 25 a 100 hectares e maiores de 100 ha, acrescenta o professor. Além disso, análise do perfil dos imóveis no Cadastro Ambiental Rural (CAR) que mais desmatam mostra que apenas 2% dos médios e grandes concentram 62% de todo desmatamento potencialmente ilegal pós 2008 na Amazônia e no Cerrado.

“É pelo mesmo motivo que não podemos combater o desmatamento apenas com medidas de comando e controle. Minha missão, no que diz respeito à Amazônia, inclui criar alternativas econômicas que reduzam o apelo das atividades ilegais de forma inequívoca concomitante a atuação de repressão. Meu governo vem desenvolvendo ações realistas nesse sentido, contemplando cinco eixos específicos – não só as já referidas ações de comando e controle, em si e por si insuficiente, mas destacando a premência de se realizar a regularização fundiária; implementar o necessário zoneamento ecológico-econômico da região; promover a tão aguardada bioeconomia; e aumentar em volume e intensidade o pagamento por serviços ambientais, diretamente ligado ao efetivo funcionamento dos mecanismos de previstos no artigo 6 do Acordo de Paris”

FALSO

O governo Bolsonaro praticamente parou a regularização fundiária na Amazônia. Foi registrado o nível mais baixo na década de emissão de títulos definitivos de terra: 553 em 2020 e apenas um em 2019, mostrou a pesquisadora Brenda Brito. A média no período foi de 3.190 títulos/ano. Em 2019, o governo começou a tentar mudar a legislação para estender a anistia à grilagem de terras.

O Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) é um instrumento de gestão do meio ambiente estabelecido em 1981 na lei que criou a Política Nacional de Meio Ambiente. Em 2002, um decreto presidencial definiu em âmbito nacional as diretrizes, responsabilidades e formas de fazer o ZEE. Cabe à União fazer o ZEE Nacional e os ZEEs de macrorregiões. Aos Estados, fazer o ZEE estadual ou regional.

No caso da Amazônia, o Macrozoneamento Zoneamento Ecológico-Econômico da Amazônia Legal (MacroZee da Amazônia Legal) já foi feito e aprovado por decreto presidencial em 2010, com o objetivo de orientar a formulação e espacialização das políticas públicas de desenvolvimento, ordenamento territorial e meio ambiente, assim como decisões de agentes privados.

Nenhuma ação de bioeconomia foi adotada no governo. E o que seria o maior programa de pagamento por serviços ambientais (PSA) do país, o Floresta+, criado com recursos internacionais do GCF (Fundo Verde do Clima), está parado há dois anos porque o ministro Ricardo Salles não queria distribuir benefícios a indígenas, quilombolas e pequenos agricultores, como determinam as principais linhas de ação do programa, que até agora não desembolsou nenhum centavo. Ao contrário do que afirma o presidente, o PSA independe dos mecanismos de mercado para funcionar – tanto assim que o Brasil obteve US$ 96,5 milhões do GCF para esse fim.

“Para tanto, queremos ouvir as entidades do terceiro setor indígenas, comunidades tradicionais e todos aqueles que estejam dispostos a contribuir para um debate construtivo e realmente comprometido com a solução dos problemas.”

DUVIDOSO

A ficha corrida de diálogo com o terceiro setor do governo Bolsonaro é acabrunhante. O presidente acabou em uma canetada com praticamente todos os colegiados na área ambiental que tinham participação do terceiro setor; responde no Supremo Tribunal Federal por excluir a sociedade civil do Conselho Nacional de Meio Ambiente; recriou colegiados apenas para aparelhá-los, designando em alguns deles um organismo paraestatal controlado pelo ministro do Meio Ambiente (o Fórum Brasileiro de Mudança Climática) como único representante da sociedade civil; Bolsonaro chamou as ONGs que atuam na Amazônia de “câncer” que não consegue “matar”; mandou agentes da Abin à Conferência de Madri para espioná-las; é acusado por indígenas de crimes contra a humanidade; e o ministro Ricardo Salles tem o hábito de enviar notificações judiciais a seus críticos.

“Outra iniciativa digna de registro é o nosso programa ‘Adote um Parque’, que permite a atores privados nacionais ou estrangeiros ‘adotar’ uma das 132 unidades de conservação federais existentes na Amazônia, as quais abarcam 15% daquele bioma. E aqui não se tratam (sic) de transferências financeiras para o Estado brasileiro, mas de bens e serviços a serem aplicados diretamente pelo setor privado nessas unidades de conservação.”

O governo suspendeu a maior iniciativa de apoio às unidades de conservação brasileiras, o Programa Arpa, com 15 anos de experiência e condução técnica por servidores públicos, e criou há dois meses o Adote um Parque, para captar recursos de empresas privadas em troca de marketing ambiental. Enquanto isso, o Instituto Chico Mendes, órgão gestor das unidades de conservação federais, está prestes a ter um colapso por falta de recursos financeiros.

“No que diz respeito ao carbono, a que há pouco me referia, há outro dado que desejo salientar: no âmbito do programa de pagamento por resultados REDD+, instrumento da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, o Brasil já teve certificadas 7,8 gigatoneladas de carbono (sic) equivalente em reduções de emissões oriundas de desmatamento evitado, o que equivaleria a USD 133 bilhões, se calculados tomado como referência o valor do crédito de carbono negociado na Califórnia. Este volume equivale a nada menos do que cinco anos de emissões líquidas do país.”

NÃO É BEM ASSIM

Com a explosão do desmatamento sob Bolsonaro, o governo inviabilizou a maior iniciativa de REDD+ do mundo, o Fundo Amazônia, criado em 2008, no governo Lula. Pelas regras do fundo, o país recebe recursos internacionais a partir da redução de emissões decorrentes do desmatamento. No entanto, o limite para aporte de recursos no período 2016-2020 era de 8.143 km2. Sob Bolsonaro, o desmatamento atingiu 10.129 km2 em 2019 e 11.088 km2 em 2020, bem acima da linha de corte. Por isso, o Brasil deixou de ter direito aos pagamentos dentro das regras criadas pelo BNDES para o fundo. Pior: como explica o engenheiro florestal Tasso Azevedo, que concebeu o Fundo Amazônia, toda vez que a taxa aumenta e ultrapassa o limite de aporte o país precisa compensar esse aumento no ano seguinte com uma redução do desmate. Nos dois anos de governo Bolsonaro, a “dívida” acumulada no Fundo Amazônia é de 4.933 km2. Ou seja, caso o fundo fosse retomado neste ano, o Brasil precisaria terminar 2021 com 3.206 km2 de desmatamento para poder receber recursos.

O Brasil tem R$ 2,9 bilhões doados por Noruega e Alemanha em recursos de REDD+, por meio do fundo, que estão parados desde 2019 por decisão do ministro Ricardo Salles – o governo é processado no Supremo Tribunal Federal (STF) por isso. Salles tentou alterar a composição dos comitês do fundo para controlá-lo, mas os países doadores recusaram a mudança. Os comitês foram então dissolvidos e até hoje os R$ 2,9 bilhões, que poderiam ser usados para reduzir desmatamento e queimadas, estão parados no BNDES.

O argumento do presidente sobre os supostos “créditos”, além disso, tem três problemas. Primeiro, não existe, no quadro legal da Convenção do Clima, nenhuma “certificação” por reduções de emissão por desmatamento. O que há são reportes nacionais, que não passam por nenhuma auditoria ou crivo para valerem como “crédito”; são simplesmente acolhidos pela Convenção. Segundo, o Brasil adotou uma linha de base para redução de emissões por desmatamento, chamada Frel (Forest Reference Emission Levels, na sigla em inglês), ancorada para sempre no ano de 1996, quando o desmatamento foi muito elevado – de 18 mil quilômetros quadrados. Assim, para resultados obtidos entre 2006 e 2010, a linha de base é a média de desmatamento entre 1996 e 2005; para resultados de 2011 a 2015, a linha de base é a média do desmatamento de 1996 a 2010, e assim por diante, sempre com 96 como ponto de partida.

É diferente do funcionamento do Fundo Amazônia, no qual a linha de base é móvel, baseada na média da década anterior e revisada a cada cinco anos (1996-2005, 2001-2010, 2006-2015 e 2016-2025).

O argumento de Bolsonaro de que o país teria reduções passadas (dos governos petistas, registre-se) em haver, além de tudo, embute uma “pedalada”: o país já clamou essas reduções de 2011 a 2015 para obter os US$ 96,5 milhões do Fundo Verde do Clima em 2019. Ou seja, além de vender terreno na Lua, Bolsonaro tenta vender o mesmo lote duas vezes.