Câncer, mortalidade neonatal, desequilíbrio hormonal, doenças mentais, renais, auditivas e respiratórias estão entre os agravos registrados. Segurança alimentar não depende do controle químico em plantações

Defensores da utilização de agrotóxicos em larga escala no Brasil e no mundo costumam dizer que essas substâncias são os “remédios” das plantações. A ideia de que os agrotóxicos seriam um recurso benéfico à saúde das plantas, indispensável à sobrevivência das lavouras e à segurança alimentar da população mundial é repetida à exaustão há décadas. O mesmo discurso insiste que, em um país tropical como o Brasil, de clima quente e úmido, a proliferação de pragas é especialmente grave, o que tornaria a produção agrícola dependente da utilização massiva de agrotóxicos.

Não é o que a literatura científica documenta: estudos conduzidos no Brasil e no mundo desmontam o mito de que essas substâncias seriam “aliadas” da saúde e das lavouras, e mostram que a produção livre de agrotóxicos é possível e necessária. Há vasta literatura científica associando os agrotóxicos ao adoecimento humano — por intoxicação aguda ou agravos crônicos —, ao desequilíbrio de ecossistemas e à contaminação da água e do solo, o que prejudica simultaneamente o meio ambiente e a agricultura.

Além disso, enquanto, nos últimos quatro anos, a liberação de novos agrotóxicos no Brasil bateu recordes, a segurança alimentar despencou e a fome passou a atingir 33,1 milhões de pessoas no país (dado de 2022), indicando que não há relação entre o uso extensivo de biocidas e o combate à fome. Foram 2.182 novas substâncias aprovadas entre 2019 e 2022, um aumento de 71% em relação aos quatro anos anteriores e a maior número registrado desde o início da série histórica, segundo dados da Coordenação-Geral de Agrotóxicos e Afins do Ministério da Agricultura.

Dossiê científico e técnico produzido pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida apontou que o uso intensivo de agrotóxicos é uma exigência do modelo de produção do agronegócio, baseado em monoculturas extensivas, produção de grãos em larga escala para exportação e uso de sementes transgênicas. Segundo o dossiê, na comparação com os cultivos de base agroecológica, esse modelo convencional induz a mais degradação ambiental, estresse dos ecossistemas e mais emissões de gases de efeito estufa.

Liberação de agrotóxicos explodiu no Brasil durante o governo Bolsonaro. Fonte: Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – Coordenação-Geral de Agrotóxicos e Afins – CGAA

Impactos na saúde e meio ambiente

Segundo o Atlas dos Agrotóxicos 2022, publicação internacional liderada pela Fundação Heinrich Böl, a cada ano ao menos 385 milhões de pessoas adoecem por intoxicações causadas por agrotóxicos em todo o mundo. Os mais afetados são trabalhadores rurais do Sul Global, expostos diretamente ao manejo dos biocidas.

Segundo a mesma publicação, no Brasil, entre 2010 e 2019 foram 56.870 pessoas intoxicadas por agrotóxicos, uma média de 5.687 casos por ano, ou 15 pessoas por dia. O próprio documento, no entanto, destaca que os dados de intoxicação no Brasil, um dos líderes mundiais no consumo de agrotóxicos, são subnotificados e que a estimativa é que os números reais de intoxicação sejam significativamente maiores.

O Sinan, o Sistema de Informação de Agravos de Notificação do Ministério da Saúde, registra 64.606 intoxicações por agrotóxicos para o mesmo período (2010-2019), e 5.125 casos para o ano passado (2022). Luiz Claudio Meirelles, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e ex-gerente de toxicologia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), explica que todos esses registros são relativos às intoxicações agudas, às quais estão suscetíveis principalmente os trabalhadores rurais que inalam, tocam ou ingerem acidentalmente agrotóxicos em grandes quantidades ou a população de áreas rurais afetadas por pulverização aéreas de agrotóxicos.

Além dessas, há as contaminações crônicas, que acometem o conjunto da população através da exposição prolongada a alimentos e água contaminados — e essas não são contabilizadas entre os casos de intoxicação.  Gestantes, crianças e adolescentes, que experimentam alterações hormonais e imunológicas intensas, são considerados grupos populacionais especialmente vulneráveis ao adoecimento decorrente da contaminação por agrotóxicos. “E, mesmo entre os casos de intoxicação aguda, há uma subnotificação muito importante. Há uma conjuntura que permite isso, que passa pela dificuldade de acesso aos serviços de saúde, a sobrecarga de profissionais e uma série de outras razões”, diz Meirelles.

Os efeitos dos “remédios de planta” na saúde são tão profundos que as pesquisadoras Márcia Sarpa, do Instituto Nacional do Câncer (Inca), e Karen Friedrich, da Fiocruz, publicaram, no ano passado, um estudo indicando o papel da agroecologia nas políticas públicas de prevenção ao câncer. “Entre os efeitos sobre a saúde humana associados à exposição a agrotóxicos, os mais preocupantes são as intoxicações crônicas, caracterizadas por infertilidade, abortos, malformações congênitas, neurotoxicidade, desregulação hormonal, imunotoxicidade, genotoxicidade e câncer”, diz o texto.

O ensaio sistematiza dados da literatura científica sobre a relação entre exposição a agrotóxicos e o desenvolvimento de câncer, reforçando que os dados epidemiológicos internacionais demonstram “forte associação entre a exposição ocupacional e ambiental aos agrotóxicos e o desenvolvimento de alguns tipos de câncer adulto e infantil, como LNH, leucemias, câncer de mama, câncer de próstata, câncer de bexiga, câncer de cérebro, entre outros”. Por isso, sugerem que a elaboração de políticas públicas para prevenção do câncer no contexto da saúde coletiva deve passar, necessariamente, pela introdução de uma alimentação saudável e de sistemas produtivos baseados na agroecologia, sem uso indiscriminado de agrotóxicos.

Em 2020, um time de pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) sistematizou dados da literatura científica publicada entre 2000 a 2017 sobre danos à saúde causados por agrotóxicos em trabalhadores rurais, mostrando que agravos crônicos como câncer, doenças mentais, neurológicas, endócrinas, renais, auditivas, respiratórias e autoimunes são mais recorrentes nessa população. Os estudos também indicam que trabalhadores rurais expostos a agrotóxicos apresentam maior risco para os chamados efeitos subclínicos, como danos genéticos e alterações bioquímicas, e sinais clínicos de intoxicação aguda.

Os estudos analisados revelaram, ainda, a presença de resíduos de agrotóxicos na urina, no sangue e no leite humano, além de indicar que esses resíduos podem afetar a cadeia alimentar e atingir rios, lagos, mares, reservas de mananciais e lençóis freáticos, ocasionando contaminação do solo.

Outra revisão sistemática, essa de 2018, analisou estudos sobre o impacto dos agrotóxicos no meio ambiente publicados de 2011 a 2017. As mais de 100 pesquisas científicas analisadas evidenciaram o prejuízo a insetos, água, solo e peixes. Os estudos mostraram também como substâncias já proibidas no Brasil, como o hexaclorociclohexano (HCH), permanecem no meio ambiente e seguem sendo detectadas em amostras de águas, poços e mananciais. Em regiões produtoras de soja, cultura extensiva que é campeã no uso de agrotóxicos no Brasil segundo o Atlas de 2022, os agrotóxicos foram encontrados até mesmo na água da chuva.

O último relatório do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos (PARA), da Anvisa, analisou os 14 alimentos de origem vegetal mais representativos da dieta da população brasileira: abacaxi, alface, alho, arroz, batata-doce, beterraba, cenoura, chuchu, goiaba, laranja, manga, pimentão, tomate e uva e encontrou resíduos de agrotóxicos em mais da metade (51%) das amostras.

Mas o perigo não está apenas nos alimentos in natura. Dois levantamentos inéditos realizados pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) revelaram a presença de agrotóxicos também em alimentos ultraprocessados: em 2021, o primeiro volume da publicação Tem Veneno Nesse Pacote analisou bebidas, biscoitos, pães e salgados mais consumidos pelos brasileiros e revelou que 59,3% dos produtos continham resíduos de pelo menos um tipo de agrotóxico.

O segundo volume se debruçou sobre ultraprocessados feitos com base em carne e lácteos mais consumidos no Brasil e encontrou agrotóxicos em 58% das amostras e 14 dos 24 produtos analisados. “Neste segundo volume, a abordagem de produtos derivados de carne e leite permite-nos somar ainda um ‘nó’ para essa ‘teia’ de riscos: a produção industrial e o consumo excessivo de produtos de origem animal é um dos principais fatores levando à crise climática, que, se não for contida, terá efeitos desastrosos que ameaçam a vida no planeta”, diz a publicação.

Glifosato: um capítulo à parte

Não há como falar sobre o adoecimento por agrotóxicos no Brasil sem citar especificamente o glifosato: o ingrediente é classificado desde 2015 pela a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc, na sigla em inglês), órgão da Organização Mundial da Saúde (OMS), como um provável carcinógeno (agente causador de câncer) para humanos. No entanto, segue sendo o agrotóxico mais comercializado no país, segundo dados de 2021 do Relatório de Comercialização de Agrotóxicos no Brasil, elaborado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Utilizado para matar ervas daninhas, o glifosato é um herbicida do tipo “não-seletivo”. Isso quer dizer que ele destrói não apenas o seu “alvo”, mas a maioria dos vegetais que encontra pelo caminho. Por isso, é muito utilizado em culturas baseadas em sementes transgênicas, criadas especialmente para resistir à ação do ingrediente.

O lucrativo ciclo se retroalimenta: a megaempresa de químicos Monsanto (hoje pertencente à gigante Bayer), que desenvolveu nos anos 1970 os herbicidas à base de glifosato, lançou nos anos 1990 sua própria linha de sementes transgênicas resistentes ao ingrediente, alavancando vendas casadas e uso massivo do agrotóxico em todo o mundo. No Brasil, destaca Luiz Cláudio Meirelles, o uso do glifosato ocorre majoritariamente nas culturas de soja transgênica.

Enquanto na União Europeia, que discutiu intensamente o banimento da substância após a classificação da Iarc (e prorrogou a autorização de uso até o final deste ano, quando nova avaliação científica será feita), a água é considerada potável contendo no máximo 0,1 micrograma de glifosato por litro, no Brasil o índice de resíduo “aceitável’ é de até  500 microgramas por litro, cinco mil vezes mais.

A imagem mostra a discrepância entre a quantidade tolerada de glifosato na água do Brasil e da União Europeia. (Fonte: Atlas dos Agrotóxicos – 2022)

 

E mais: um estudo pioneiro publicado em fevereiro deste ano investigou os impactos à saúde de populações de municípios que, apesar de estarem distantes das lavouras de soja contaminadas por glifosato, são abastecidos por cursos d’água que passam por essas regiões. A pesquisa revelou que houve alta de 5% na mortalidade infantil nessas áreas.

Brasil: sumidouro de agrotóxicos do mundo? 

Desde 2008, o Brasil está entre os líderes mundiais no consumo de agrotóxicos — e, como apontam especialistas, vem paulatinamente se tornando um “sumidouro” global para produtos já banidos em seus países de origem e outros mercados justamente por causarem danos à saúde humana e ao meio ambiente.

O ranking varia de acordo com o critério de avaliação adotado: os dados mais recentes da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês), de 2020, para números absolutos (toneladas de agrotóxicos utilizadas) posicionam o Brasil em segundo lugar, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e superando a China, que já esteve na vice-liderança.

Se considerado o uso de agrotóxicos por área plantada, o país ocupa hoje a 14ª posição em 160 países no ranking da FAO, com 5,94 kg de agrotóxicos utilizados por hectare em 2020. Já os números mais recentes do IBGE, de 2014, e indicam 6,7 kg/ha  — e mostram que esse valor mais que dobrou desde o início da série histórica, em 2000, quando o índice era de 3,2 kg/ha.

Em números absolutos, Brasil é o segundo país que mais consome agrotóxicos no mundo. (Imagem: FAO/ONU)

Entre 2010 e 2020, a quantidade de agrotóxicos comercializados no Brasil aumentou 78,3%, quase o triplo do crescimento da área cultivada no país (27,6%), segundo estudo de Sonia Hess e Rubens Nodari, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A pesquisa mostrou ainda que, do total de produtos químicos registrados no Brasil entre 01 de janeiro de 2019 a 30 de junho de 2022, 50,8% continham pelo menos um ingrediente ativo banido ou sem registro na União Europeia. Dentre os 504 ingredientes ativos de agrotóxicos com registro para uso no país em agosto de 2022, 78,8% (397 ingredientes) eram produtos químicos produzidos industrialmente, dentre os quais 146 (36,8%) não tinham uso permitido na União Europeia.

 A liberação acelerada de agrotóxicos no país pode se agravar ainda mais com a aprovação do Projeto de Lei apelidado de “PL do Veneno”. Aprovado na Câmara dos Deputados no ano passado, o PL foi encaminhado para o Senado Federal sob a numeração 1459 e é duramente criticado por ambientalistas, movimentos sociais e cientistas. A Fiocruz declarou que “O PL, se aprovado no Senado da República, promoverá danos irreparáveis aos processos de registro, monitoramento e controle de riscos e dos perigos dos agrotóxicos no Brasil, com graves danos à saúde humana e ao ambiente”. 

Entre as mudanças previstas, estão a permissão para o registro de produtos mais tóxicos e a retirada da função histórica dos Ministérios da Saúde e do Meio Ambiente sobre a regulação dos agrotóxicos. A atual legislação sobre  agrotóxicos no Brasil (7802/1989) proíbe o registro de agrotóxicos com “características teratogênicas, carcinogênicas ou mutagênicas” e “que provoquem distúrbios hormonais e danos ao aparelho reprodutor, de acordo com procedimentos e experiências atualizadas na comunidade científica”. No PL 1459, essa proibição deixa de existir. 

Luis Fernando Guedes Pinto, doutor em Agronomia e diretor-executivo da Fundação SOS Mata Atlântica, destaca que a eliminação do uso de substância comprovadamente prejudiciais interessa tanto ao meio ambiente quanto à agricultura. Exemplificando com o uso dos agrotóxicos neonicotinóides, já banidos na Europa, ele explica que essas substâncias estão associadas à diminuição das populações de abelhas em todo o mundo, inclusive no Brasil.

“Mais do que os impactos óbvios à perda da biodiversidade em cadeia, o desaparecimento das abelhas tem também resultado na diminuição da polinização e da produção de culturas agrícolas. Isso tem sido largamente estudado e a decisão da UE está embasada em um amplo conjunto de estudos científicos, o que não parece ser o caso das propostas elaboradas no congresso nacional”, afirmou, em artigo.

E a fome?

Os dados apresentados pelo Atlas dos Agrotóxicos indicam que a utilização em larga escala de agrotóxicos não se destina prioritariamente à produção de alimentos e à segurança alimentar: aproximadamente metade do volume total de pesticidas vendidos no Brasil foi destinada à produção de soja. Somando-se a s culturas de cana de açúcar, milho e algodão, tem-se 82% de toda a destinação dos agrotóxicos comercializados, que sustentam um modelo baseado na produção de commodities para a exportação e uma relação predatória com o ambiente e as populações tradicionais.

“O uso de produtos tóxicos somente interessa à indústria que o produz e ganha com isto. A transição para uma produção com produtos menos dependente ou livre de tóxicos, com menor impacto ambiental e mais sustentável é tecnicamente possível e somente depende da vontade de enfrentar o poder e interesses de poucos”, sintetiza Luis Fernando Guedes Pinto. Atualmente, quatro gigantes multinacionais — Syngenta Group, Bayer, Corteva e BASF — controlam cerca de 70% do mercado de mundial de agrotóxicos, segundo o Atlas dos Agrotóxicos.

O Relatório Especial sobre Mudança do Clima, Desertificação, Degradação da Terra, Manejo Sustentável da Terra, Segurança Alimentar e Fluxos de Gases de Efeito Estufa em Ecossistemas Terrestres, publicado pelo IPCC (o painel do clima na ONU) em 2020, apontou que o aumento da produção de alimentos poderá ser alcançado por meio da intensificação sustentável, e não através da aplicação indevida de insumos externos adicionais, como agrotóxicos. O documento indicou ainda que a diversificação do sistema alimentar pode reduzir os riscos da mudança do clima.