Funciona como quando o mafioso diz ao cidadão que está cobrando para protegê-lo da própria máfia

Uma das frases que o ministro Ricardo Salles (Meio Ambiente) gosta de proferir é a de que o Brasil é “credor” no clima e o mundo nos deve bilhões pelo bem que o país faz ao meio ambiente. Nessa realidade paralela, ele está certo de que o país tem a receber uma fortuna por créditos de carbono do Protocolo de Kyoto, assim como pelos serviços ambientais que tão bem o país presta ao planeta preservando suas florestas.

Disse Salles no ano passado que “Se prestamos serviços ambientais para o mundo, nada mais natural do que recebermos por ele”. Funciona um pouco como um pizzo de Tony Soprano, quando o mafioso diz ao cidadão que está cobrando para protegê-lo da própria máfia. No caso, Salles acha natural o país receber para pisar no freio do desmatamento e não no acelerador. Do contrário…

Alguém contou para o ministro que país gerou bilhões de dólares em créditos de carbono que não foram pagos. “Desde 2005, o Brasil tem cerca de 250 milhões de toneladas de gás carbônico para receber (sic). Isso gera mais ou menos uma receita US$ 2,5 bilhões. Essa é também uma medida que instigamos. Pedimos para que os países desenvolvidos, inclusive do G7, nos ajudem a quitar essa fatura do Protocolo de Kyoto.”

Só que não é bem assim. Países em desenvolvimento foram beneficiados pelo Protocolo de Kyoto, que emitiu créditos de carbono – um papel que dá a seu portador o direito de emitir o equivalente a uma tonelada de CO2, compensada em algum lugar do mundo por um projeto de redução de emissões – para incentivar projetos que evitassem a emissão de gases de efeito estufa. Até o final do ano passado, os milhares de projetos em todo o mundo ganharam quase 2 bilhões de créditos de carbono. Mais da metade foi para a China. Os projetos brasileiros receberam pouco menos de 150 milhões de créditos de carbono (e não 250 milhões).

Nessa época, a União Europeia experimentava seu mercado de carbono. Milhares de indústrias tiveram que limitar suas emissões – elas recebiam uma cota de permissões para emitir. Quem não conseguisse tinha três opções: comprar permissões que sobraram de indústrias que fizeram mais do que sua lição de casa; pagar uma multa salgada ou comprar os créditos de carbono do Protocolo de Kyoto, gerados por países em desenvolvimento ou nações do ex-bloco socialista.

Dessa maneira, pelo menos metade dos créditos brasileiros foram vendidos a empresas europeias e pagos por elas. Isso funcionou até a recessão de 2008-09. Com a atividade econômica reduzida, as indústrias se viram com sobras de permissões. Como em qualquer mercado, o excesso de oferta foi derrubando o preço da permissão e do crédito de carbono. Em 2012, mesmo com a retomada da economia europeia, havia sobras de permissões. A direção do mercado de carbono europeu tomou medidas para enxugar o excesso. Uma delas foi parar de aceitar créditos de carbono dos grandes países emergentes: Brasil, China e Índia, entre outros.

Um detalhe importante: os contratos de venda de créditos de carbono eram feitos sempre entre empresas e nunca entre países. Quase todos tinham uma cláusula de rescisão, que terminava o contrato caso o mercado europeu parasse de aceitar esses créditos. Foi isso que aconteceu com a maioria dos contratos. E ninguém ficou devendo nada ao país.

Mesmo assim, até o ano passado, um terço dos projetos brasileiros continuaram a receber e vender créditos de carbono, agora para outros mercados.

Shigueo Watanabe Jr. é físico e pesquisador do Instituto ClimaInfo