Manifestações do Presidente da República, não contestadas pelo vice, são contrárias a medidas rigorosas contra infratores

A publicação do Decreto Nº 10.239, em fevereiro deste ano, trouxe certo alento para a sociedade brasileira, em particular para os cidadãos preocupados com a questão ambiental. A transferência do Conselho Nacional da Amazônia Legal do Ministério do Meio Ambiente para a Vice-Presidência retirou sua presidência das mãos do rejeitado “ministro destruidor do Meio Ambiente”, colocando-a sob a autoridade de um raro membro do governo federal que, aparentemente, demonstra alguma sensatez. Entre as competências do conselho estão a proposição de “políticas e iniciativas relacionadas à preservação, à proteção e ao desenvolvimento sustentável da Amazônia Legal”, o apoio à “pesquisa científica, o desenvolvimento tecnológico e a inovação” e “o cumprimento das metas globais em matérias de adaptação e mitigação das mudanças climáticas”, todas apontando para uma política ambiental afirmativa.

No entanto, esse alento inicial é arrefecido logo em seu Art, 4o, que estabelece a composição do conselho. Além da óbvia ausência de representação dos governos estaduais da região amazônica, amplamente comentada pela imprensa, destaca-se a falta de representação direta do Ibama, da Funai, da comunidade científica e da empresarial especializada no desenvolvimento sustentável. O conselho obviamente é caracterizado por seu caráter “chapa-branca”, com forte predominância da visão militar sobre a região. De fato, 19 militares compõem o conselho, sendo 15 oficiais superiores e quatro oficiais generais, além do próprio vice-presidente.

Apesar disso, os discursos e iniciativas iniciais do presidente do conselho foram na direção correta. Em reunião com os governadores da região, o general Hamilton Mourão anunciou a criação do Gabinete de Prevenção e Combate ao Desmatamento e às Queimadas e, na primeira reunião do conselho, enfatizou as iniciativas de prevenção à expansão do Covid-19 na Amazônia Legal, a reativação do Fundo Amazônia e financiamento internacional, e o uso da Garantia da Lei e da Ordem contra as queimadas. Por outro lado, o Ministro Ricardo Salles aparentemente reduziu seu protagonismo nas ações do governo referentes à Amazônia.

A recente “Operação Verde Brasil 2” de fato mostrou uma bem-vinda intenção do governo em combater as atividades extrativistas ilegais na Amazônia, com apreensão de máquinas, equipamentos e madeira ilegalmente extraída. Mas essa é praticamente sua única ação no sentido correto, muito aquém do necessário, e com o aspecto negativo de reduzir o protagonismo do Ibama, submetendo-o à governança militar.

Na verdade, muito mais foi feito em sentido contrário. Em particular, a revogação do decreto que impedia a expansão do plantio de cana-de-açúcar na Amazônia e Pantanal, já no ano passado, a autorização para exportação de madeira “in natura”, o apoio à regularização da grilagem de terras, através do PL 2.633/2020, iniciativa que estimulou o forte afrouxamento das ações contra a grilagem – especialmente no Estado de Mato Grosso, como denunciou o Presidente da Associação Brasileira do Agronegócio, Marcelo Britto, em entrevista no canal Agro Voz –, e a exoneração de dois dos principais responsáveis do Ibama por operações contra madeireiros e mineradores ilegais em terras indígenas. Tudo isso vem acrescido das constantes manifestações do Presidente da República, não contestadas pelo vice, contrárias a medidas de punição rigorosa contra os infratores.

Em recente entrevista o vice-presidente colocou, como condicionante para redução do desflorestamento na Amazônia, a necessidade da aprovação do PL 2.633/2020. Embora a questão legal da posse da terra na Amazônia seja, de fato, um grave problema que necessita ser solucionado, o PL representa uma solução simplista e permissiva para uma questão extremamente complexa, que será piorada com sua aprovação. Além disso, o vice-presidente propositadamente ignora que o desmatamento caiu em mais de 80% entre 2004 e 2012, com base em apenas três fatores principais: monitoramento, fiscalização e punição.

O PL 2.633 representa uma solução simplista e permissiva para uma questão extremamente complexa, que será piorada com sua aprovação

Enquanto isso, o cenário se torna cada vez mais sombrio. A taxa de desmatamento aumentou substancialmente entre agosto de 2019 e maio de 2020, já atingindo 89% da área desmatada no ano anterior, segundo Nota Técnica do Inpe. Considerando-se que o período entre novembro e abril tradicionalmente não é o de maior ocorrência de desmatamento, esse dado é muito preocupante, porque aponta para uma área desmatada, entre agosto de 2019 e julho de 2020, superior à observada no último período equivalente. Acrescente-se a isso a pandemia do Covid-19, atabalhoada e incompetentemente gerida pelo governo federal. Segundo a mesma Nota Técnica, há alta possibilidade de que o pico de contaminação por esse vírus ocorra em época próxima do pico de queimadas na Amazônia. Isso vai representar uma falência total do sistema de saúde pública na região, devido ao forte aumento de casos de doenças respiratórias causadas pela poluição atmosférica das queimadas.

Para piorar, o ministro Ricardo Salles resolveu sair dos bastidores, estendendo sua ação predatória à Mata Atlântica, através do despacho que reconhecia áreas desmatadas e ocupadas até julho de 2008 como de uso consolidado, contrariando a Lei da Mata Atlântica, e solicitando o cancelamento de mais de 1.400 multas por desmatamento e incêndios na Amazônia. Essa iniciativa vai na direção de estimular ainda mais a destruição desse inestimável bem ambiental que são as florestas brasileiras. Na Amazônia, o desmatamento bateu recorde no primeiro trimestre de 2020 e piorou no quarto mês do ano, atingindo 406 km2, 64% a mais do que no ano passado, segundo o sistema Deter, do Inpe. Essa parece ter sido uma das primeiras “boiadas” das muitas que ele pretende fazer passar durante a pandemia, conforme abjetamente informou durante a nefasta reunião ministerial de 22 de abril, mais conhecida como o “Circo dos Horrores”.

Ricardo Magnus Osório Galvão é professor do Instituto de Física da USP. Foi diretor do Inpe (2016-2019) e escolhido pela revista Nature uma das dez personalidades da ciência em 2019.