A negativa da licença para a Petrobras perfurar um poço de petróleo na bacia da Foz do Amazonas, em 17 de maio, mostrou que não são só os desmatadores da Amazônia que odeiam o Ibama. Políticos do Amapá e do Pará, à esquerda e à direita, uniram-se nas críticas ao órgão ambiental e na defesa da produção de óleo na região.
Candidato a anfitrião da conferência do clima da ONU em 2025, o governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), já propôs até mesmo discutir a transição energética “daqui a 50 anos”, prazo muito maior do que o que a ciência dá para o mundo zerar emissões líquidas de gases de efeito estufa.
O senador David Alcolumbre (União Brasil) chamou a decisão de “um desrespeito ao povo amapaense” e prometeu “lutar” para revertê-la. O também senador Randolfe Rodrigues (sem partido), conhecido por sua defesa das pautas ambientais e por embates com o ex-ministro do Desmatamento Ricardo Salles, queixou-se de que o povo do Amapá “não foi ouvido” pelo Ibama (o Ibama fez três audiências públicas sobre o processo em Oiapoque e Macapá, além de reuniões informativas com a população local e uma com povos indígenas). Acabou ganhando um elogio de Salles nas redes sociais.
Fakebook.eco coligiu e verificou dez afirmações recentes feitas por Helder, Randolfe e pelo governador do Amapá, Clécio Luís (SDD), em entrevistas sobre o caso da foz. As declarações contêm desinformação, desconhecimento, violações semânticas e ao menos uma confusão geográfica. Leia a seguir:
1. “O que o presidente do Ibama fez foi assinar uma decisão irresponsável, absurda, uma decisão que parece muito mais ser baseada numa ideologia pessoal.” (Clécio Luís)
FALSO –
A decisão de Rodrigo Agostinho se baseou em parecer técnico da Diretoria de Licenciamento Ambiental do Ibama, que recomendou o indeferimento da licença em razão de inconsistências no estudo ambiental apresentado pela Petrobras. O parecer técnico apontou que o estudo apresentado pela Petrobrás não constatou todos os impactos ambientais do empreendimento, não listou medidas de mitigação que pudessem ter sua efetividade verificada, não apresentou medidas específicas para as comunidades indígenas no Plano de Comunicação Social e tinha “deficiências significativas no Plano de Proteção à Fauna”. Quanto ao último item, destaca que o pedido de licenciamento não contemplava a mitigacão adequada de possíveis impactos do vazamento de óleo sobre a fauna marinha e, entre outras lacunas, não previa ações de monitoramento da costa — o que representaria grande risco de perda de biodiversidade e uma remota possibilidade de resgate e reabilitação da fauna em caso de acidente com vazamento de óleo.
O despacho do presidente do Ibama seguiu ainda o entendimento da equipe técnica do órgão quanto à necessidade de realização de Avaliação Ambiental de Área Sedimentar (AAAS), tipo de avaliação estratégica instituída há mais de uma década e considerada fundamental para esse tipo de empreendimento. A Petrobras baseou-se em uma exceção prevista na portaria interministerial que a instituiu: a possibilidade de admissão de atividades exploratórias por meio da manifestação conjunta do Ministério de Minas e Energia e Ministério do Meio Ambiente, sem necessidade de AAAS, uma disposição transitória que seria utilizada enquanto não havia tempo hábil para conclusão da avaliação estratégica. “Na perspectiva da política ambiental, é inaceitável que a AAAS, instituída há mais de uma década, ainda não tenha sido implementada em bacias sedimentares consideradas novas fronteiras exploratórias”, diz o parecer.
2. “Esse leilão foi feito há 11 anos, um dos mais concorridos, as duas empresas internacionais que tentaram não conseguiram vencer a burocracia estatal. Entrou a Petrobras, que é a maior especialista do mundo em exploração em águas profundas.” (Clécio Luís)
NÃO É BEM ASSIM –
A inglesa BP, em consórcio com a Petrobras, arrematou o bloco FZA-M-59 em 2013, na 11ª Rodada da ANP. Na ocasião, nove blocos foram licitados, a maioria para a francesa Total. Em 2018, o Ibama negou licença à Total para cinco perfurações na foz do Amazonas por falta de estudos adequados sobre impactos e medidas de resposta a desastres. A BP iniciou em 2015 os estudos de impacto ambiental para o bloco 59, mas um parecer do Ibama de 2019 concluiu que “a falta de definição da estrutura de atendimento à fauna, da unidade de perfuração e das embarcações de apoio que seriam utilizadas para realização da Avaliação Pré-Operacional (APO) e aprovação do Plano de Emergência Individual (PEI) inviabilizavam a emissão de uma Licença de Operação”. Em 2020 o Ibama deu prazo à BP para apresentar novas informações que sanassem os problemas apontados, mas a empresa britânica devolveu o bloco para a ANP naquele mesmo ano. Em seguida a Petrobras o arrematou.
3. “(…) A 540 km da foz do rio Amazonas. Porque do jeito como falam eles desinformam, passam como se fosse explorar petróleo na boca do rio Amazonas. As bacias estão localizadas a 174 km da ponta do Cabo Orange.”
“Essas possíveis bacias não estão na bacia sedimentar do rio Amazonas, estão quase no final da nossa plataforma [continental].”(Clécio Luís)
VERDADE, MAS –
O governador se utiliza de uma confusão semântica para desinformar. A bacia sedimentar onde a Petrobras quer procurar petróleo é chamada de Foz do Amazonas pela própria ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) por estar sob a influência da pluma de sedimentos do rio, que se estende Atlântico adentro por até 300 mil quilômetros quadrados, não por estar na boca do rio Amazonas. Assim como outras bacias oceânicas (Campos, Santos, Barreirinhas, Jequitinhonha), ela está na plataforma continental, uma extensão submarina da América do Sul.
4. “O que o Ibama está fazendo de forma irresponsável é impedir que a gente pesquise. Em qualquer outro lugar teria que ser tomada uma providência mais enérgica. Uma coisa é o Estado brasileiro que colocou à disposição do mercado através de leilão esses lotes que esse mesmo Estado disse depois que não podemos nem pesquisar. A fase [em] que nós estamos, a fase exploratória, é de pesquisa. O Ibama está impedindo que a gente faça pesquisa.” (Clécio Luís)
ENGANOSO –
O governador comete mais um abuso semântico, ao chamar de “pesquisa” a prospecção de petróleo. O que o Ibama recomendou foi justamente que se faça pesquisa — a Avaliação Ambiental da Bacia Sedimentar — para que, em caso de viabilidade ambiental, os poços de petróleo sejam licenciados no atacado, como já ocorre em outras regiões do país, e não mais um a um. Os riscos ambientais só poderão ser dimensionados após esses estudos. O Ibama não impediu a pesquisa mesmo na acepção usada pelo governador: desde 2013 a Petrobras vem fazendo pesquisa sísmica com autorização do órgão ambiental, e antes de 2011 dezenas de poços exploratórios foram perfurados na parte rasa da Foz do Amazonas – sem indícios comerciais de óleo.
5. “Nós somos dependentes de petróleo do resto do mundo, produzimos um petróleo insuficiente para o Brasil, por isso nosso combustível é tão caro.” (Clécio Luís)
FALSO –
O Brasil é mais do que autossuficiente em petróleo: na verdade é um grande exportador de óleo cru, que foi o segundo item da nossa pauta de exportações em 2022, abaixo apenas da soja. O Brasil é o 15º maior exportador de petróleo do mundo, à frente até mesmo de países da Opep, como a Venezuela. Se computados os derivados que o país também exporta, combustíveis fósseis são o primeiro item da nossa balança comercial. O petróleo extraído em águas brasileiras não fica no país. O que não há no Brasil é capacidade instalada de refino, portanto nós exportamos petróleo e importamos gasolina e diesel. Esse é um dos motivos — mas nem de longe o único — para o alto preço dos combustíveis no Brasil.
6. “Não existe nenhuma comprovação rigorosa da existência dos corais.” (Clécio Luís)
FALSO –
O banco de recifes da foz do Amazonas foi descrito pelos cientistas em 2016 e apresentado como uma surpresa, já que plumas de sedimento de grandes rios costumam atrapalhar o desenvolvimento de corais. O caso gerou controvérsia, com alguns pesquisadores questionando a existência e a vitalidade dos recifes. Em 2022, um grupo de cientistas liderados por Thomás Banha, do Instituto de Biociências da USP, publicou um artigo no periódico Frontiers in Marine Science afirmando, com base em revisão da literatura, que a existência do banco de recifes na região da foz do Amazonas é “um fato”. Além de rodólitos (algas calcárias), há corais e peixes típicos do Caribe. A extensão total do sistema de recifes não é bem conhecida, mas o primeiro estudo descrevendo o ecossistema estimou-a em 9.500 km2, uma área comparável à da Jamaica.
7. “Essa perfuração é em águas profundas. A profundidade lá é 2.880 metros. Esse tipo de operação a Petrobras já fez mais de mil vezes com zero acidente.” (Clécio Luís)
NÃO É BEM ASSIM –
Não existe “zero acidente” em nenhuma atividade de produção de petróleo. Dados da ANP mostram que apenas em 2022 houve 62 incidentes em atividades de petróleo offshore, com o derramamento de 217 mil litros de óleo no mar. A Petrobras tem um histórico notável de segurança nesse tipo de operação e até hoje não aconteceu no Brasil nenhum acidente grave como o do poço de Macondo, explorado pela BP no Golfo do México, que explodiu em 2010. Daí não decorre, porém, que problemas não possam acontecer na Foz do Amazonas, região de correnteza forte e muita chuva. Segundo o parecer do Ibama, as correntes de superfície na região são de três a cinco vezes mais velozes que as do Sudeste. Em 2011, a correnteza arrastou um navio-sonda e obrigou a Petrobras a abandonar um poço perfurado no bloco FZA-M-252.
8. “Sou a favor da transição energética, acho necessário, ocorre que essa transição vai demorar pelo menos 50 anos e não podemos ser proibidos de pesquisar e até de explorar petróleo para nosso povo, para gerar emprego, gerar renda.” (Clécio Luís)
FALSO –
O IPCC, o painel do clima da ONU, deixou claríssimo em seu Sexto Relatório de Avaliação, em 2021, que a humanidade precisa alcançar emissão líquida zero em 2050 se quiser ter 66% de chance ou mais de limitar o aquecimento global em 1,5ºC, como preconiza o Acordo de Paris. A transição energética, portanto, precisará acontecer em metade do tempo previsto pelos governadores do Amapá e do Pará (Helder Barbalho, candidato a anfitrião da COP30, também tem falado em 50 anos). A Agência Internacional de Energia, em seu relatório de 2021 que estabeleceu a trajetória para a estabilização em 1,5ºC, afirmou que nenhum campo novo de petróleo poderia ser licenciado no mundo a partir de 2021 se a humanidade estivesse falando sério sobre estancar a crise climática. Isso exigirá zerar as vendas de novos carros a combustão interna em 2035 e reduzir a demanda por petróleo de 93 milhões para menos de 25 milhões de barris por dia.
9. “Não tem nenhuma ameaça ambiental. O mesmo risco ambiental que tem nesse lugar tem na exploração da costa fluminense, tem na costa de Sergipe ou na costa do Rio Grande do Norte” (Randolfe Rodrigues)
INVERIFICÁVEL –
Não é possível medir risco (entendido como probabilidade x consequência) numa área pouco estudada. Além disso, o que se sabe até agora sobre a Foz do Amazonas é que ela é ambientalmente sensível e que os planos de contingência são muito mais difíceis de operar ali do que em outras áreas — o porto que atenderia a resposta a emergências é o de Belém, a 850 km do bloco 59, e o tempo de navegação até o local, segundo o parecer do Ibama, seria de 43 horas, contra 10 a 15 horas que o óleo levaria para atingir a Guiana Francesa. Além da dificuldade de acesso, a existência de mangues e áreas protegidas no litoral do Pará, do Amapá e da Guiana Francesa aumenta, em tese, o impacto de um vazamento com óleo chegando à costa.
10. “Posso admitir que a França explore petróleo nessa mesma bacia há dez anos e o Brasil não se permita a pesquisar a oportunidade para que uma empresa da dimensão da Petrobras faça o mesmo?” (Helder Barbalho)
FALSO –
A França não explora petróleo na região; o país veda a exploração de óleo em suas águas territoriais desde 2017, e isso inclui a Guiana Francesa. Quem explora petróleo no litoral norte da América do Sul é a Guiana, a 700 km da costa do Oiapoque e a 1.200 km da boca do Amazonas em linha reta. É uma distância comparável à que separa a bacia de Santos do Uruguai.
* Editado às 17h45 de 24/05 para incluir informação sobre audiências públicas realizadas pelo Ibama.