Ao contrário do que afirmou Salles, floresta com projeto mineral da Vale no Pará não é a mais preservada do Estado

O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e o presidente Jair Bolsonaro insistiram nesta semana na narrativa de que o problema das queimadas no Brasil é uma fabricação de ONGs e líderes estrangeiros interessados em minar a competitividade do agronegócio brasileiro.

Na quarta-feira (22), Salles deu uma entrevista a jornalistas aliados na Jovem Pan exibindo a cause celèbre da semana do discurso do governo: um mapa global de queimadas da Nasa que mostra a África “queimando mais” que a Amazônia. No dia seguinte, em uma de suas transmissões ao vivo no Facebook, Jair Bolsonaro exibiu o mesmo mapa.

Salles alegou que a África tem mais queimadas que o Brasil, mas que as de lá não “reverberam” porque a região é “tutelada” por “interesses europeus”. Além do preconceito que demonstra, a afirmação é distorcida: a África, em especial a bacia do Congo, tem muitas queimadas na estação seca – frequentemente mais que a Amazônia – por conta do tipo de vegetação, composta de savanas abertas e campos. Mas há menos queimadas nas áreas de floresta. Na Amazônia, a variação no número de queimadas está ligada ao desmatamento de florestas tropicais. Especialistas insistem em que não se deve comparar as duas realidades.

O ministro apresentou uma série de outras informações falsas ou distorcidas na entrevista: disse que os índices de queimadas estão caindo – quando eles aumentaram em junho e estão aumentando em julho -, que a imprensa não repercutiu com a mesma intensidade os incêndios da Austrália e que a Flona de Carajás, no Pará, onde a Vale mantém mineração de ferro, é a floresta “mais preservada do Pará”.

Verificamos abaixo as principais alegações do ministro.


“Neste ano, em razão da atuação da GLO, do decreto assinado pelo presidente Bolsonaro, já estamos vendo os índices de queimadas se reduzindo. É uma tarefa importante que tem que somar esforços não só do governo federal, tem que ter a participação dos estados também.”

FALSO

O decreto autorizando a operação do Exército (GLO) foi assinado no dia 11 de maio. No mês de junho, o primeiro que pode ser avaliado integralmente após a vigência da GLO, houve aumento de 19,6% dos focos de calor no bioma Amazônia em relação ao mesmo mês do ano anterior, segundo o Inpe. O total de 2.248 focos foi o maior para o mês nos últimos 12 anos. Em julho, até o dia 23, a alta era de 27% em relação ao mesmo período do ano passado.

Mesmo se for considerado todo o primeiro semestre, o total de focos de calor no bioma em 2020 (7.903) foi maior que em oito dos últimos dez anos (só os primeiros semestres de 2016 e 2019 registraram mais focos).

“Primeiro, a África não tem a quantidade de ONGs e pseudoespecialistas que tem aqui no Brasil, portanto lá não tem tanta gente para fazer barulho em cima desse assunto. Segundo, a África não é concorrente do agronegócio como é o Brasil, um país que produz produtos de qualidade com preços competitivos e em grande escala (…) Essa região da África em geral tutelada por muitos interesses, inclusive europeus, não tem um presidente contra o establishment como é o presidente Bolsonaro. Então realmente há uma explicação muito grande do por que o excesso de reverberação sobre as queimadas no Brasil, ignorando totalmente o que está acontecendo na África. Aliás, no ano passado não foi diferente. Se a gente olhar o que se falou das queimadas no Brasil, logo em seguida a Austrália teve um volume de queimadas substancialmente maior. E nem de longe teve a cobertura da imprensa internacional e de alguns líderes políticos estrangeiros como teve aqui no Brasil.”

FALACIOSO

Notícias ou declarações de políticos sobre queimadas na África, na Austrália ou em qualquer outro país não afastam o problema das queimadas no Brasil, que estão aumentando e geram graves consequências para o meio ambiente e para a população. Essa argumentação foi repetida pelo presidente Jair Bolsonaro na live de ontem (23/7) para tentar afastar a realidade: dados oficiais mostram que o desmatamento na Amazônia está aumentando de forma descontrolada, enquanto fiscais do Ibama são excluídos do comando das ações na Amazônia.

Além disso, a comparação mencionada por Salles e Bolsonaro não faz sentido, por se tratar de situações distintas. Em relação à África subsaariana, por exemplo, a área queimada anualmente em geral é maior do que a da Amazônia em extensão. Isso se deve a práticas agrícolas da região e à vegetação, que é muito diferente da amazônica – são savanas e campos, não uma floresta tropical sistematicamente destruída. O gráfico abaixo, da Nasa, mostra a diferença entre o tipo de emissão por queimada na África subsaariana e na América do Sul.

Fonte: http://www.globalfiredata.org/_plots/annual_emissions.pdf

A Austrália teve entre o segundo semestre do ano passado e o começo deste ano a pior temporada de queimadas de sua história, causada por uma onda de calor – cuja severidade é atribuída à mudança climática -, não por uso da terra. Sobre a cobertura da imprensa internacional, o ministro faz uma afirmação falsa. Uma busca simples na agência Reuters por “Amazon fires 2019” e “Australia fires 2019” mostra 179 notícias sobre a Amazônia e 360 notícias sobre a Austrália. A explicação é simples: os incêndios australianos atingiram áreas densamente povoadas e, para a imprensa anglo-saxã e europeia, a Austrália é muito mais fácil de cobrir que a Amazônia.

“Quando você vai fiscalizar, não sabe quem está sendo fiscalizado, quem está ocupando aquele território. (…) A regularização fundiária é pré-requisito fundamental para que haja ordenamento territorial da Amazônia e a responsabilização das pessoas, sobretudo em relação à aplicação do Código Florestal. Não tendo proprietário, não tem em quem fazer o enforcement, a cobrança das regras do Código Florestal.”

FALSO

Na Amazônia, a maior parte do desmatamento ocorre em áreas privadas, onde é possível saber previamente quem é o proprietário da terra. Mesmo assim, o enforcement (fiscalização e punição) não é feito. Análise do MapBiomas de todos os alertas de desmatamento registrados pelo Inpe em 2019 mostrou que dois terços do desmatamento no Brasil ocorreram em áreas que cruzavam pelo menos um Cadastro Ambiental Rural (CAR) – ou seja, é possível saber quem declara possuir a área e punir essa pessoa. Com base nisso, o Ibama criou em 2016 a Operação Controle Remoto, para fiscalizar o desmatamento sem necessidade de ir a campo em todos os casos. Da mesma forma, o desmatamento foi reduzido em mais de 80% entre 2004 e 2012 sem necessidade de mudar a lei de titulação.

“O desmatamento chegou a ser nos anos 2004 e 2005 três vezes mais do que foi no ano passado. Portanto, não é verdade que o desmatamento no ano passado é o recorde de desmatamento na Amazônia. É praticamente um terço do que foi em 2004/2005. Ainda assim, consideramos que esse aumento, que vem de 2012, é consequência de uma ausência de política pública para a região.”

FALACIOSO

Salles recorre à falácia argumentativa conhecida como “espantalho”, pela qual uma premissa falsa é levantada (“o desmatamento em 2019 foi o recorde na Amazônia”) para ser rebatida com dados reais (o desmatamento em 2004 foi de quase 28 mil km2, portanto, quase três vezes maior que os 10 mil km2 de 2019).

A variação do desmatamento de 2018 para 2019, primeiro ano do governo Bolsonaro, foi a segunda maior desde 1988, quando teve início o monitoramento sistemático realizado pelo Inpe, registrando aumento de 34,4% em relação ano anterior. Só é menor que a variação de 1994 para 1995, quanto houve aumento de 95,1%. A alta percentual de 2019 é recorde para os últimos 24 anos e só reforça a tendência de descontrole sobre o desmatamento na Amazônia, cuja expectativa é de novo aumento em 2020. Em termos absolutos, a taxa medida (10.129 km2) foi a maior desde 2008.

“Graças à operação de GLO, combatido o fogo nos meses de setembro e outubro, o governo Bolsonaro trouxe o índice de queimadas naquele período para o menor número dos últimos 20 anos.”

EXAGERADO

O número oficial de focos de calor no bioma Amazônia, que havia explodido em agosto de 2019, caiu em setembro e outubro. Mas em setembro não foi registrado o menor índice dos últimos 20 anos: foram 19.925 focos, mas em 2013 haviam sido registrados 16.786. O total de focos de calor para outubro de 2019 foi o menor desde 1998, início da série histórica, mas não há como atestar, como afirma o ministro, que a causa foi a participação das Forças Armadas no combate.

“E este ano, em 11 de maio, quando começa a GLO, nós já vimos no mês passado no site do Inpe uma informação de que as queimadas se reduziram em 23%.”

FALSO

Houve aumento de 19,6% dos focos de calor no bioma Amazônia em junho, primeiro mês completo de vigência da GLO, em relação ao mesmo mês do ano anterior, segundo o Inpe. O total de 2.248 focos foi o maior para o mês desde 2008. Mesmo se for considerado outro critério, não por bioma, mas por estados da Amazônia Legal (que inclui trechos de cerrado e outras áreas), o total de focos manteve-se estável, com 4.838 em junho de 2019 e 4.596 em junho de 2020, uma redução de 5%.

“O Brasil tem uma das normas mais restritivas do mundo, arrisco a dizer talvez a mais restritiva do mundo, que é o Código Florestal. Muitos países que nos criticam não têm nada nem de perto, nem parecido com o que nós temos.”

FALSO

Há pelo menos 11 países que possuem legislações florestais rigorosas. Segundo estudo comparativo feito sobre o tema no Brasil em 2011, de autoria do Imazon e da ProForest, Reino Unido e Índia são dois exemplos de países onde a reserva legal – entendida como a porção de florestas numa propriedade privada – é ainda mais rigorosa que no Brasil. Enquanto aqui proprietários podem desmatar 80% de sua propriedade na maioria dos biomas (exceto na Amazônia, onde o limite é de 65% para áreas de cerrado e 20% para áreas de floresta), indianos e britânicos são totalmente proibidos de desmatar em suas áreas florestais. No Japão, onde 59% das florestas está em propriedades privadas, a lei também veda inteiramente o desmatamento. Na França, a conversão de mais de 4 hectares é totalmente proibida. Na Alemanha e nos países escandinavos, a extração de madeira é permitida, mas com recomposição. Todos esses países têm financiamento à manutenção de florestas e ao reflorestamento.

“Aqueles que não se enquadram nas boas ONGs ou bons acadêmicos são aqueles que estavam pendurados em verba pública do governo ou de repasse de verbas internacionais, sem controle sobretudo, até o advento da presidência de Jair Bolsonaro. E foi na presidência de Bolsonaro que em várias esferas do governo fechou-se a torneira para essa mamata de seminário, viagem, estudos que nunca terminam, verbas para programas que não levam a lugar nenhum. Essa turma estava pendurada nesse monte de dinheiro, quer seja nacional ou repassado do exterior.”

FALACIOSO

O ministro inviabilizou o funcionamento do Fundo Amazônia sob alegações jamais comprovadas de que havia malversação da verba por ONGs. Auditorias externas e análises do Tribunal de Contas da União e da Controladoria-Geral da República não demonstraram irregularidades alegadas pelo ministro. Salles está sendo processado no Supremo Tribunal Federal (STF) por ter paralisado cerca R$ 1,5 bilhão do fundo doados ao Brasil, que poderiam estar sendo empregados no combate ao desmatamento e às queimadas na Amazônia.

Reportagem do Congresso em Foco de janeiro de 2020 mostra que Salles foi o ministro que mais usou aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) em voos com até 3 passageiros, ação que resultou na exoneração do secretário-executivo da Casa Civil, Vicente Santini: “Das 64 viagens com no máximo três passageiros previstos, o ministro do Meio Ambiente foi responsável por 25 delas. De acordo com a planilha, estava previsto que Salles viajasse uma vez sozinho, dez vezes com um acompanhante e 14 vezes com outros dois passageiros.”

“Há tribos indígenas que também querem participar da exploração minerária dessa grande riqueza que tem na Amazônia, seja de diamante, ouro, nióbio, manganês, do que quer que seja. Eles querem participar, e tem lhe sido negado esse direito de expressar a sua vontade, como se houvesse um terceiro iluminado, um acadêmico, uma ONG ou até um órgão público, como a Funai, se colocando no papel de decidir pelo indígena o que ele entende que é melhor para ele mesmo.”

MEIA-VERDADE

O Projeto de Lei (PL 191) apresentado pelo governo Bolsonaro em fevereiro de 2020 para autorizar exploração econômica de recursos naturais em Terras Indígenas estabelece que as comunidades afetadas serão ouvidas, mas não poderão vetar atividades como construção de hidrelétricas, mineração industrial e exploração de petróleo e gás natural. Em relação ao garimpo, o texto prevê autorização dos índios, mas os termos para que isso ocorra serão definidos pelo Ministério de Minas e Energia. Ou seja: a palavra final será do governo.

O parágrafo 2° do artigo 231 da Constituição estabelece, porém, que “as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”.

“A floresta homogênea mais bem preservada no Pará é justamente a de Carajás, preservada pela Vale. A Vale tem a mina de ferro e em contrapartida cuida da floresta no entorno.”

FALSO

Imagens de satélite compiladas pelo projeto MapBiomas Amazônia mostram que a Floresta Nacional de Carajás, onde a Vale tem atividades de mineração de ferro, está longe de ser “a floresta homogênea mais bem preservada do Pará”. A Flona tem 90% de seus 332 mil hectares mantidos como floresta. Apenas para ficar na mesma categoria de área protegida e no mesmo Estado, a Flona Saracá-Taquera, onde há também mineração e exploração sustentável de madeira, tem 96% de sua área como floresta. A Flona de Trairão, também no Pará, tem 99,9% de sua área preservada.

A Flona de Carajás é preservada não por ser objeto de cuidado de uma empresa, mas por ser uma unidade de conservação federal – uma terra pública que tem uma fração de sua área concedida à iniciativa privada para atividade econômica. A Vale cuida da floresta como parte do acordo para poder licenciar a atividade mineral. Caso não houvesse a Flona, a floresta estaria desprotegida e a Vale nada faria para impedir desmatamento no entorno. Salles tem buscado minar os mecanismos que ele mesmo elogia: defende a flexibilização do licenciamento ambiental (que permitiu à Vale conservar a floresta de Carajás) e a revisão das unidades de conservação federais.