Tese similar, de que maior parte do fogo na Amazônia vem de técnicas agrícolas, já hava sido desmentida pela Nasa em 2019

A embaixada do Brasil em Washington compartilhou em sua lista de e-mails, no último dia 19/8, um texto que desinforma sobre incêndios florestais no Brasil.

Trata-se da tradução em inglês de um artigo de Evaristo de Miranda, chefe da Embrapa Territorial, cujo título é “Julho com queimadas e sem incêndios”. Originalmente publicado em uma revista ligada ao bolsonarismo, o texto foi enviado a pessoas dentro e fora dos EUA com quem a embaixada mantém relações – como representantes de outros países, jornalistas, acadêmicos e políticos americanos.

É falsa a informação do título de que julho foi um mês “sem incêndios”. Apenas na Amazônia – onde em tese incêndios florestais não deveriam nem ocorrer, por tratar-se de uma floresta tropical – foram detectados por satélite 321 focos de fogo em floresta primária, segundo dados do Portal TerraBrasilis, do Inpe. Isso corresponde a 6% de tudo o que queimou no mês de julho no bioma.

Fonte: Inpe

O TerraBrasilis não tem dados de fogo desagregados por tipo de vegetação em outros biomas além da Amazônia, portanto é difícil saber quanto queimou de vegetação nativa no mês passado no Cerrado e no Pantanal. Mesmo sem esses dados, porém, a afirmação de que julho foi um mês “sem incêndios” não se sustenta.

O artigo também desinforma ao construir uma argumentação falsa usando dados verdadeiros escolhidos a dedo pelo autor, a chamada “seleção de evidências” (cherry-picking, em inglês). O método é usado comumente pelo chefe da Embrapa Territorial, frequentemente criticado por seus pares por produzir e interpretar dados de forma distorcida para defender teses de um setor do agronegócio. É de Miranda, por exemplo, a tese do “boi bombeiro”, espalhada pela ministra Tereza Cristina (Agricultura) e já refutada pelo Fakebook.eco.

No texto compartilhado pela embaixada, Miranda afirma que o mês de julho de 2021 em todo o Brasil teve praticamente o mesmo número de queimadas de julho do ano passado (15.985 e 15.804), respectivamente, com quedas no Pantanal (70%) e na Amazônia (27%), segundo dados do Inpe. Os números estão corretos. Mas precisam ser contextualizados: na Amazônia, mesmo com a queda de 27%, julho de 2021 teve mais queimadas que 2012, 2013, 2014, 2015 e 2018. No Pantanal, que sofreu no ano passado a pior seca em 50 anos e os piores incêndios registrados em toda a história, que consumiram 25% do bioma, era esperado que houvesse uma queda após um aumento recorde de 241% em 2020 em relação a 2019. Em 2021 foi registrado o segundo pior julho dos últimos quatro anos.

Miranda também faz uma distinção entre incêndios florestais, que seriam “fogo indesejável, fora de hora e lugar”, e queimadas, que ele classifica como “tecnologia agrícola” usada “para renovar pastagens, combater carrapatos, eliminar a palha da cana-de-açúcar na colheita, diminuir resíduos vegetais acumulados etc.”

Segundo o chefe da Embrapa, “incêndios são muitas vezes provocados criminalmente ou de forma irresponsável por quem lança cigarros ou garrafas (cacos atuam como lupas ao sol) na vegetação, abandona fogueiras ou deixa velas acesas após rituais religiosos, queima lixo etc”. Ele acrescenta apenas que “podem ser provocados ocasionalmente por raios”. Em nenhum momento o texto menciona, por exemplo, que parte dos incêndios que consumiram um quarto do Pantanal no ano passado foi iniciada, segundo a Polícia Federal, por produtores rurais limpando áreas e desmatando vegetação nativa para ampliar pastagens – num ano excepcionalmente seco.

O texto também omite que, na Amazônia, quase metade (48%) dos focos de calor em julho ocorreram em áreas de desmatamento recente – ou seja, longe de ser uma operação para “combater carrapatos”, o fogo foi causado por pessoas eliminando a floresta. Em 2019, Miranda já afirmara, segundo dados dele próprio, que 90% das queimadas na Amazônia ocorriam em áreas de pastagem. Foi desmentido pela Nasa.

Miranda também muda a região geográfica de sua análise para concluir, sem apresentar nenhuma evidência, que “a maioria dos focos registrados em julho na América do Sul foram de queimadas em sistemas de produção pouco tecnicizados”. Até então, o artigo falava do Brasil. Trata-se de um recurso argumentativo conhecido como non sequitur, no qual a conclusão não segue logicamente a premissa. Além disso, introduz um elemento vago, “a maioria”, que contradiz o título, “sem incêndios”, mas o poupa de ser desmentido.

Não é a primeira vez que a embaixada brasileira em Washington, chefiada pelo olavista Nestor Forster, circula textos de Evaristo de Miranda tentando dourar a pílula da imagem ambiental internacional do Brasil. Em junho, a representação brasileira divulgou outro artigo do mesmo missivista afirmando que o Brasil era “campeão da proteção florestal” e que os portugueses haviam feito “o manejo sustentável do pau-brasil por três séculos”. A madeira parou de ser exportada, segundo Miranda, não porque estivesse ameaçada, mas por causa da concorrência com os corantes sintéticos, no século 19.

“Fato é que o surgimento dos corantes artificiais no século 19, mais baratos, atenderam a uma demanda; o pau-brasil se tornou raro por causa de sua exploração desde o século 16”, afirma o geógrafo Yuri Tavares Rocha, da Universidade de São Paulo, uma das maiores autoridades do país na história da exploração daquela árvore.

Procurada na última sexta-feira (20/8), a embaixada em Washington respondeu na tarde desta terça (24/8): “informamos que a divulgação do artigo circulado em 19 de agosto integra rotina de atividades da Embaixada do Brasil, com vistas a apresentar informações e dados objetivos de interesse para o público norte-americano”.