"Metas" de Mourão são apenas números num pedaço de papel – tão críveis quanto as ordens de “cortem a cabeça!” da Rainha de Copas

CLAUDIO ANGELO
FELIPE WERNECK

Não é por falta de papel com um monte de coisa escrita que a Amazônia amarga as piores taxas de desmatamento dos últimos 12 anos: o Brasil tem hoje nada menos do que dois planos de combate à devastação em vigor ao mesmo tempo. É um recorde no mundo tropical, quiçá na história da humanidade. Ambos estão devidamente publicados no Diário Oficial da União. E meticulosamente ajeitados para não funcionar.

O antiministro do Meio Ambiente tem um plano. Ele foi publicado em novembro do ano passado no Diário Oficial na forma de uma resolução, elaborado em janeiro e atualizado no final de março, a um mês da cúpula de líderes sobre o clima da qual o regime esperava sair com um cheque de US$ 1 bilhão. O general Hamilton Mourão, que atualizou as nossas definições de “vice decorativo”, tem outro. Em abril, o vice-presidente publicou um plano no mesmo Diário Oficial, estabelecendo pela primeira vez na era Bolsonaro uma meta de redução do desmatamento: até o final do governo a proposta seria levá-lo à “média histórica” verificada entre 2016 e 2020. Ou seja, 8.700 km2, 16% mais do que antes de Jair Bolsonaro assumir o governo.

Existia, ainda, um terceiro plano contra a devastação. Era o PPCDAm, o Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia. Ele foi publicado na forma de um decreto presidencial em 2003, revogado pelo decreto de novembro passado, e contribuiu de forma decisiva para a redução de 83% na devastação da Amazônia verificada entre 2004 e 2012. O plano teve quatro fases e atravessou cinco mandatos presidenciais até ser engavetado por Ricardo Salles no seu primeiro dia de trabalho. Foi uma morte sem enterro: Salles simplesmente extinguiu a secretaria que executava o plano e nunca mais falou nele. Só foi sepultá-lo formalmente depois de quase dois anos.

A duplicação de estruturas governamentais é uma característica do Estado autoritário. Em seu clássico Origens do Totalitarismo, de 1951, Hannah Arendt detalha como tanto o nazismo quanto o stalinismo se especializaram em criar órgãos sobrepostos. Havia a polícia do Estado e a polícia do partido; a secretaria de relações exteriores do Estado e a do partido (na Alemanha nazista havia três órgãos diplomáticos); os ministérios do Estado e os ministérios do partido; e até mesmo a divisão da Alemanha em províncias foi duplicada e sobreposta pelos nazistas, com dois mapas diferentes valendo ao mesmo tempo. “A estrutura política do país mantém-se à prova de choques exatamente por ser amorfa”, diz Arendt.

Esse amorfismo, que visa proteger de olhares inquisidores a real política pública, parece estar em ação no caso dos planos contra o desmatamento. Afinal, qual deles está valendo? Que indicadores de desempenho podem ser verificados e cobrados? E a qual autoridade devem ser dirigidas as cobranças?

Apesar de o Ministério do Meio Ambiente ter o prazer sádico de sempre dirigir as demandas de imprensa sobre desmatamento ao Conselho da Amazônia, até os coronavírus do ar-condicionado do Palácio do Planalto sabem que Mourão não apita nada. Desde a descoberta da conspiração de seu assessor para depor o presidente, o general é um ex-vice no cargo. Com a saída das tropas da Amazônia no último dia 30, após uma operação de GLO (garantia da lei e da ordem) fracassada e abortada um ano e meio antes do previsto, Mourão perdeu o único meio de implementação de sua autoridade na Amazônia e sua única alavanca de poder.

O plano publicado no dia 9 de abril (e, sintomaticamente, assinado apenas pelo general) deve ser entendido mais como uma declaração de isenção de responsabilidade pelo aumento iminente do desmatamento do que como uma proposta de política pública para ser levada a sério. Em bom miliquês, o que Mourão está dizendo é “essa pica é do aspira”. As tais “metas” do “plano”, que consumiram rios de tinta na imprensa, são apenas números num pedaço de papel – tão críveis quanto as sucessivas ordens de “cortem a cabeça!” da Rainha de Copas de Lewis Carroll.

O dono da bola é e sempre foi, para azar nosso, o ministro do Meio Ambiente. Para convencer os americanos de que tinha um plano de combate ao desmatamento, empreitada em que quase teve sucesso, Salles fez o que sempre faz quando quer simular policymaking: montou um arquivo PDF. O documento tem mais de 50 objetivos, um pot-pourri de políticas já em curso, algumas metas setoriais chutadas e alguns elementos de um outro plano para a Amazônia, apresentado por Mourão em 2020 – aquele incluía controle de “100% das ONGs”. Neste plano do ministro, que passou virtualmente despercebido pela imprensa, aparecem ideias que os inimigos Salles e Mourão compartilham, como tirar o monitoramento do desmatamento do Inpe e entregá-lo aos militares e legalizar a grilagem. Excetuando estas maldades, o “plano” não tem pé nem cabeça.

Ainda que tivesse, Salles evidentemente não tem intenção nenhuma de implementá-lo. Todas as ações do ministro vão no sentido oposto. Para citar apenas um exemplo, o terceiro objetivo listado no tal “plano”, logo na segunda página, prevê a atuação da Polícia Federal para “aumentar a responsabilização por crimes ambientais”. Como sabemos, Salles é alvo de uma notícia-crime no STF justamente por tentar atrapalhar uma apreensão de madeira da PF no Pará – aparentemente atendendo a pedidos dos madeireiros.

Curiosamente ausente do plano operativo de Salles está a Força Nacional de Segurança (“Quando mais visível é uma agência governamental, menos poder detém; e, quanto menos se sabe da existência de uma instituição, mais poderosa ela é”, escreveu Arendt). A tropa de policiais militares comandada pelo marido de Carla Zambelli é a aposta da vez do ministro para, em mais uma emulação do bolchevismo, duplicar a função de agência de proteção ambiental. Na antevéspera do fim da GLO, Salles, por meio do ministro da Justiça, Anderson Torres, determinou que a Força Nacional seja deslocada para a Amazônia por 260 dias. Enquanto isso, tramita na comissão de Meio Ambiente da Câmara, comandada por Zambelli, um projeto de lei que transforma a PM em órgão ambiental – com poder de multar e embargar propriedades.

Segundo o antiministro do Meio Ambiente declarou à jornalista Giovana Girardi, a Força Nacional é necessária para o combate imediato ao desmatamento, já que para os PMs basta pagar diárias e para o Ibama é preciso fazer concurso, o que seria “demorado” e “caro”. São dois argumentos furados: os R$ 400 milhões que o Exército torrou na Amazônia em um ano dariam para bancar o salário de mil fiscais do Ibama por seis anos. E o déficit de agentes é conhecido do regime desde a eleição. Um mês após o segundo turno, Bolsonaro escarneceu da necessidade de contratar 3.000 agentes para o Ibama e o ICMBio. Se estivesse interessado em completar o quadro do Ibama, Salles teria tido tempo de fazer dois concursos.

Mas não está. A ideia é criar um “Ibama do B”, uma autêntica polícia ambiental “do partido”, formada por elementos da base bolsonarista e comandada pela própria tropa de choque de Bolsonaro. Com todo o processo sancionador ambiental desmontado por Salles, com o Ibama fora da jogada e com a inteligência sobre os crimes ambientais vinda sabe-se lá de onde, é difícil imaginar o que essa milícia ambiental vai fazer na Amazônia. Combater desmatamento é que não será.

Claudio Angelo é coordenador de comunicação do Observatório do Clima e autor de A espiral da morte – como a humanidade alterou a máquina do clima (Companhia das Letras, 2016).

Felipe Werneck é editor do Fakebook.eco.

Texto originalmente publicado no Direto da Ciência.