De 711 ocorrências registradas na década de 1970, chegou-se a 3.165 no período de 2010 a 2019; alertas fizeram cair mortes

A ideia de que não há aumento na ocorrência e intensidade de eventos extremos é um dos argumentos mais comuns entre negacionistas climáticos. A afirmação de que os eventos extremos sempre ocorreram — e por causas naturais — pretende “sustentar” esse mito, e é invocada como uma “prova” de que não haveria mudanças nas temperaturas e no clima como resultado da ação humana.

Em 50 anos, desastres naturais aumentaram quase cinco vezes

Mesmo que negacionistas climáticos insistam em afirmar que não haveria razão para “alarmismo ambiental”, já que a humanidade hoje conseguiria “sobreviver melhor ao clima” e estaria mais preparada para lidar com eventos extremos, minimizando a gravidade da crise, o que a ciência comprova é um agravamento da intensidade e dos impactos desses fenômenos. Relatório da Organização Meteorológica Mundial (OMM), órgão das Nações Unidas, mostrou que, em cinquenta anos, os desastres naturais aumentaram quase cinco vezes. Publicado no ano passado, o relatório mostrou que entre 1970 e 2019 foram registrados mais de 11 mil desastres, que causaram mais de 2 milhões de mortes e US$ 3,64 trilhões em danos.

De 711 ocorrências de secas, eventos de temperaturas extremas, inundações, deslizamentos de terras, tempestades e incêndios florestais registradas na década de 1970, chegou-se ao número de 3.165 no período de 2010 a 2019. As mudanças climáticas, eventos extremos e os desastres naturais que deles decorrem não nos afetam “menos”, pelo contrário: as perdas econômicas resultantes desses desastres aumentaram oito vezes nesses 50 anos. De uma média diária de US$ 49 milhões (na década de 1970), passaram para US$ 383 milhões (no período 2010-2019).

O número de mortes, porém, diminuiu em 60% nesse período, em razão de alertas precoces e gerenciamento para proteção de populações em risco. Enquanto, na década de 1970, foram mais de 50 mil mortes por ano, chegou-se a menos de 20 mil mortes por ano na década de 2010. Os números, no entanto, evidenciam o abismo da desigualdade: mais de 91% dos óbitos ocorreram em países em desenvolvimento. Apenas metade dos 193 países-membros da OMM têm sistemas de alerta precoce multirriscos, e há lacunas consideradas graves nas redes de observação climática e hidrológica na África, em algumas partes da América Latina e nos países insulares do Pacífico e do Caribe, aponta o documento. Segundo a representante especial da ONU e chefe do Escritório das Nações Unidas para a Redução do Risco de Desastres, Mami Mizutori, o número de pessoas vulneráveis a desastres aumenta devido ao crescimento populacional em áreas expostas a perigos e à crescente intensidade e frequência de eventos climáticos.

Os desastres climáticos, principalmente secas, tempestades, inundações e extremos de temperatura, representam metade de todos os desastres reportados, e foram responsáveis por 45% das mortes registradas e 74% do total de perdas econômicas nos 50 anos analisados pelo relatório.

IPCC: eventos extremos são mais drásticos e frequentes em planeta mais quente

A segunda parte do Sexto Relatório de Avaliação do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU), lançada em fevereiro deste ano, enfatizou que alagamentos, tempestades, secas, incêndios e outros fenômenos extremos se tornam mais drásticos e frequentes com o planeta vivendo no cenário das mudanças climáticas. Produzido pelo grupo de trabalho responsável por analisar os impactos, adaptação e vulnerabilidade, o relatório indicou que a mudança do clima induzida pela atividade humana já causou amplos impactos adversos à natureza e às pessoas. Estima-se que de 3,3 bilhões a 3,6 bilhões de pessoas vivam hoje em locais ou contextos altamente vulneráveis à mudança do clima. Gênero, etnia e renda são fatores de aumento de vulnerabilidade.

Segundo o IPCC, o aumento nos eventos extremos já levou a impactos irreversíveis, pois os sistemas naturais e humanos são forçados além de sua capacidade de adaptação. Os extremos de calor, por exemplo, causaram centenas de perdas locais de espécies, e já foram documentadas as primeiras extinções causadas pela crise do clima. O relatório aponta que espécies de todos os ecossistemas sofreram com deslocamentos e alteração de seus comportamentos sazonais. Das milhares de espécies pertencentes aos ecossistemas terrestres, de água doce e marinha, entre 50% e 66% já se deslocaram de seus habitats naturais para áreas mais altas em função das mudanças climáticas.

A primeira parte do relatório do IPCC, de agosto de 2021, estimou o quanto os eventos extremos já estão mais intensos e frequentes. Segundo o relatório, por exemplo, os dados disponíveis permitem afirmar que as ondas de calor e secas simultâneas tornaram-se mais frequentes ao longo do último século em função da ação humana.

O relatório também mostrou que os eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes expuseram milhões de pessoas à insegurança alimentar e hídrica. Os maiores impactos foram observados na África, na América Latina, na Ásia, nos pequenos países insulares e no Ártico. Além disso, os extremos climáticos estão levando cada vez mais pessoas a migrar, com pequenas nações insulares sendo afetadas de forma desproporcional.

2021: recordes climáticos e eventos extremos intensificados

O mais recente relatório da OMM mostrou que, dos sete principais indicadores das mudanças climáticas, quatro atingiram níveis recordes em 2021: as concentrações de gases do efeito estufa, o aumento do nível do mar, o conteúdo de calor dos oceanos e sua acidificação registraram valores sem precedentes. As informações complementam o último relatório do IPCC, que reuniu dados até 2019.

Ainda segundo o relatório, os desastres relacionados ao clima somaram mais de US$ 100 bilhões em danos em 2021. Foram listados, por tipo, eventos climáticos ocorridos no último ano: ondas de calor, incêndios florestais, ondas de frio e nevascas, inundações, precipitações, secas, ciclones tropicais e tempestades. O relatório destaca, por exemplo, as ondas atípicas de calor que afetaram o oeste dos Estados Unidos e do Canadá entre junho e julho do último ano, que quebraram recordes de temperaturas registradas e causaram 569 mortes em British Columbia, Canadá. Segundo o relatório, o fenômeno, por sua raridade, teria sido “virtualmente impossível” sem as mudanças climáticas.

O verão no hemisfério Norte também foi atípico na região do Mediterrâneo. Argélia, Turquia e Grécia foram afetados por incêndios florestais, que causaram mais de 40 mortes no primeiro país. Já a China enfrentou, em janeiro deste ano, uma onda de frio atípica e registrou 19.6ºC negativos em Pequim, a temperatura mais baixa desde 1966. As inundações causadas por chuvas acima da média na América do Sul também foram citadas. Entre outros exemplos, destacou-se a maior cheia da história do Rio Negro (Amazonas), que alagou cidades e afetou, segundo o WWF, mais de 455 mil pessoas. A seca na América Sul, que atingiu as regiões centro-oeste e sul do Brasil, o Paraguai, o Uruguai e o norte da Argentina, também foi registrada.

Quanto aos recordes em indicadores de mudanças climáticas, o relatório da OMM apontou, ainda, que o oceano aqueceu muito mais rápido nos últimos 20 anos e em maiores profundidades (mais de 2.000 metros), atingindo um novo recorde no ano passado e demonstrando tendência a seguir aquecendo nos próximos anos Além disso, está mais ácido do que nos últimos 26 mil anos, já que é responsável por absorver cerca de 23% do CO2 emitido por atividades humanas. Já o nível do mar subiu 4,5 centímetros, sendo o aumento anual de 2013 a 2021 mais que o dobro do que foi registrado de 1993 a 2002. Isso ocorreu principalmente devido ao derretimento acelerado das geleiras e mantos de gelo. Já as emissões de gases de efeito estufa continuaram a subir e foram superiores ao recorde de 2020, apesar dos dois anos de restrições em função da pandemia de Covid-19.

A OMM confirmou ainda que os últimos sete anos foram os mais quentes já registrados, e que 2021 só não bateu recorde porque esteve sob efeito do La Niña, que causou um resfriamento temporário no planeta. Apesar disso, a temperatura média global foi cerca de 1,1°C acima do nível pré-industrial.

E a variabilidade natural?

Os cientistas climáticos sempre apontaram que a variabilidade natural do clima não pode ser descartada, e por isso mesmo sempre foram cautelosos ao relacionar eventos extremos individuais às mudanças climáticas. Por isso, os estudos buscam levar em conta as chances de um evento extremo ocorrer num planeta com as temperaturas aumentadas pela ação humana. Foi em 2016, no relatório O Clima Global em 2011-2015, que a OMM afirmou pela primeira vez que o aquecimento da terra produz impactos na ocorrência de eventos climáticos extremos. Lançado durante a COP22, a conferência do clima de Marrakesh, Marrocos, o relatório apontou que, entre 2011 e 2015, foram registrados 79 eventos extremos no mundo. Desses, mais da metade foi parcialmente causada ou teve seu risco aumentado pelas mudanças climáticas.

Os eventos analisados foram então compilados pelo Boletim da Sociedade Americana de Meteorologia e passaram pelos chamados estudos de atribuição, ou fingerprinting, que buscam identificar e atribuir a ocorrência dos fenômenos. Analisando a possibilidade de um evento extremo ocorrer na ausência de mudança climática, infere-se o tamanho da marca do aquecimento global provocado por ação humana nesse evento. O cálculo desses estudos aponta se, e em que grau, um evento extremo específico foi tornado mais (ou menos) provável e/ou intenso devido à mudança climática.

Desde então, há crescentes evidências empíricas dos impactos do aquecimento do planeta em eventos extremos. Entre os estudos científicos recentes, por exemplo, está a investigação da relação entre as mudanças climáticas resultantes da atividade humana e as temperaturas recordes registradas em maio de 2020 na Europa ocidental. A pesquisa estimou que a ação humana tornou a ocorrência desse evento 40 vezes mais provável.

Patrícia Pinho, pesquisadora do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e coautora do relatório do IPCC, reafirma que a desestabilização dos sistemas climáticos em função do aquecimento global faz com que “haja um aumento na frequência e intensidade de eventos extremos, como precipitações, ondas de calor e secas extremas, entre outros”.

As ondas sazonais de frio, como as registradas em maio deste ano no Brasil, também podem ser consequência da emergência climática. Francisco Eliseu Aquino, climatologista da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), lembra que este, até agora, é o quarto ano mais quente do século, e explica que o aquecimento do planeta perturba as correntes atmosféricas, produzindo uma tendência de intensificação em alguns eventos, sejam eles ondas extremas de calor ou de frio. Os dias de frio em maio no hemisfério Sul foram concomitantes a uma onda severa de calor no norte da Rússia e na China. E a Índia, que registrou o mês de março mais quente em mais de um século, também em maio viveu dias de calor extremo, com os termômetros chegando perto dos 50°C.

Os eventos extremos de calor na Índia e no Paquistão, inclusive, também foram analisados por pesquisadores da World Weather Attribution, rede de cientistas climáticos que realiza estudos de atribuição. Segundo os cientistas, as mudanças climáticas tornaram o evento 30 vezes mais provável.