Não apenas a temperatura média segue subindo, como os recordes de calor vêm superando de longe os de frio

“E esse frio todo?” é uma pergunta frequentemente usada para questionar as mudanças climáticas, seja ela referente a dias muito frios no outono brasileiro ou a uma onda de frio extremo no inverno chinês. Incautos e negacionistas usam esses eventos (e outros como neve no Saara e até granizo no sertão) como evidência contrária ao aquecimento global, confundindo tempo (ou seja, aquelas condições meteorológicas registradas em um curto período) e clima (que é fruto de análise mais prolongada e lida com séries históricas e características de cada região).

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Na verdade, o aquecimento global segue firme e forte (infelizmente). O último relatório da Organização Meteorológica Mundial (OMM, agência da ONU) confirmou que os últimos sete anos foram os mais quentes já registrados. A temperatura média global em 2021 foi cerca de 1,1°C acima do nível pré-industrial, e apenas não bateu recorde porque esteve sob efeito do fenômeno La Niña (que causou resfriamento temporário no planeta). A OMM, que é uma agência da ONU, também declarou que o mês de julho deste ano está entre os três mais quentes já registrados. A temperatura registrada em 2022  ficou cerca de 0,4°C acima do período de referência, de 1991 a 2020.

Não apenas a temperatura média do planeta segue subindo, como a ocorrência de recordes de calor vem superando de longe a ocorrência de recordes de frio. É o que mostra, por exemplo, este serviço da NOAA, que indica, dentre outras informações, que nos últimos 365 dias, considerando data por data, houve 59.029 quebras de recorde de maior temperatura máxima nas estações da rede mundial de observações (a Global Historical Climatological Network), enquanto tivemos 22.571 recordes de menor temperatura mínima. Houve mais que o dobro de quebras de recorde para as maiores temperaturas máximas em relação às menores temperaturas mínimas.Já olhando para as quebras de recorde absoluto, houve globalmente 176 quebras de recorde de calor para 30 quebras de recorde de frio, uma uma proporção de 6 para 1.

Explicando: estatisticamente, num clima estável, a chance de ocorrer um recorde local de frio ou de calor é a mesma. No entanto, num clima em mudança, essas probabilidades ficam desequilibradas, como num dado viciado. O aquecimento global não implica a inexistência de recordes de frio, assim como um eventual resfriamento global não implica a inexistência de recordes de calor. O que acontece, porém, é que muda a probabilidade de ocorrência. Recordes de calor hoje estão muito mais prováveis que recordes de frio.

Há negacionistas que se queixam quando uma onda de calor (ou outro evento extremo cuja probabilidade aumenta com o aquecimento global) é usada para ilustrar os impactos das mudanças climáticas. Querem estabelecer uma falsa simetria. Os chamados estudos de atribuição mostram, com cada vez mais frequência, a relação entre as ondas de calor atuais (como na Índia e Paquistão e no Reino Unido) e o aquecimento global causado por ação humana. Esses são eventos  representativos do “novo normal”. O oposto ocorre quando uma ou outra onda de frio é usada para “refutar” o conhecimento estabelecido pela comunidade científica. É o mesmo que pegar os dez jogadores em quadra numa partida da NBA como amostra para a população humana (e concluir que a humanidade só é composta de indivíduos do sexo masculino com 2 metros de altura ou mais).

“No leste poderá ser a véspera de ano novo MAIS FRIA da história. Talvez possamos usar um pouco desse bom e velho Aquecimento Global pelo qual o nosso país, mas não os outros, está pagando TRILHÕES DE DÓLARES para se proteger. Agasalhem-se!”, tuitou em 2017 o então presidente dos EUA, Donald Trump, misturando conceitos e mentindo sobre valores financeiros. A administração de Trump foi marcada pelo negacionismo climático e difusão de desinformações sobre o aquecimento global que seguem ecoando em todo o mundo. Mas o frio recorde no leste dos EUA naquele inverno não apenas não era representativo de tendências de longo prazo como nem sequer era representativo espacialmente. Tampouco foi capaz de produzir grande impacto nas médias globais, mesmo tomando apenas o mês de dezembro especificamente.

Usando os dados da NOAA, constata-se que dezembro daquele ano foi o 4º dezembro mais quente do registro histórico, 1,13°C mais quente do que o normal. Uma anomalia negativa (isto é, temperaturas mais frias do que o normal) apareceu no mapa global de temperatura no Nordeste dos EUA, além de outras regiões do globo incluindo o Pacífico equatorial central e leste, assinatura típica de um evento de La Niña (o resfriamento anormal cíclico do oceano Pacífico). Mas obviamente a maior parte do mapa está pintada em tons de vermelho, que representam anomalias positivas, e merece destaque justamente o calor anômalo em áreas como o oeste da Rússia e o Alasca, cujas temperaturas ficaram vários graus acima do normal naquele mês. Em meio ao calor anômalo de dezembro de 2017, vale ressaltar a onda de calor na Austrália, com um subúrbio de Sidney atingindo impressionantes 47,3°C.

Óbvio: a conclusão a que se chega é que uma onda de frio localizada de alguns dias, mesmo severa e que envolva quebras de recordes de temperaturas mais baixas, nem sequer tem sido suficiente para alterar sensivelmente as estatísticas mesmo ao longo de um mês, especialmente na escala global. Fisicamente não há como, aliás. Por conservação da energia, o calor extra acumulado pelo aquecimento global pode até ser transportado de um lugar para outro e transferido de uma para outra componente do sistema climático, mas não pode desaparecer num passe de mágica. Ilusões a esse respeito só deveriam encontrar eco na cabeça de pessoas pouco informadas ou de má fé.

Em fevereiro de 2019 uma onda de frio histórica e mortífera se abateu sobre os EUA, relacionada a um escape do vórtice polar, uma gigantesca massa de ar frio do Ártico entrando na América do Norte. Aquele foi um dos invernos mais frios já registrados no país. Alguns cientistas relacionam os escapes do vórtice polar ao enfraquecimento dos ventos da chamada corrente de jato, que pode ter relação com o aquecimento global. A desestabilização de sistemas climáticos causada pelo aquecimento global causa, segundo Patrícia Pinho, pesquisadora do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e coautora do Sexto Relatório de Avaliação do IPCC (o painel da ONU sobre mudanças climáticas), um aumento na frequência e intensidade dos eventos extremos.

Ou seja: mesmo algumas das ondas sazonais de frio — como as que atingiram o hemisfério Sul em maio deste ano —, também podem ser consequência da emergência climática. Francisco Eliseu Aquino, climatologista da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), explica que o aquecimento do planeta perturba as correntes atmosféricas, produzindo uma tendência de intensificação em alguns eventos, sejam eles ondas extremas de calor ou de frio.

 

REFERÊNCIAS:

National Oceanic and Atmospheric Administration: 2019 was 2nd hottest year on record for Earth say NOAA, NASA 

National Centers for Environmental Information: Data Tools: Daily Weather Records

Global Historical Climatological Network

Climate Signals

National Centers for Environmental Information: Global Climate Report – December 2017

New York Times: How Hot Was It in Australia? Hot Enough to Melt Asphalt

Onda de frio nos EUA em fevereiro de 2019

The Conversation: How frigid polar vortex blasts are connected to global warming

Bureau of Meteorology: 2018–19 was Australia’s hottest summer on record, with a warm Autumn likely too

(Este texto foi adaptado do blog “O que você faria se soubesse o que eu sei?”. Atualizado por Leila Salim em 24 de agosto de 2022)