Velho personagem de teorias da conspiração, Haarp não é um instrumento "dos caras" para dificultar a vida dos golpistas

Viralizou nas redes sociais nesta semana um vídeo em que patriotas bolsonaristas expostos às intempéries afirmam que as “antenas Haarp” (sic) seriam as causadoras das fortes chuvas que atingem o país nesta primavera. Direto de um dos acampamentos que, há mais de um mês, ocupam as intermediações de quartéis pedindo que as Forças Armadas deem um golpe para evitar a posse de Lula (enquanto Eduardo Bolsonaro curte um sol no Qatar), uma manifestante diz que “os caras” estariam “mandando chuva” para atrapalhar os protestos dos guerreiros da liberdade.

Foto: Reprodução do Twitter

Fakebook.eco explica aqui o que é o Programa de Pesquisa em Aurora Ativa de Alta Frequência (Haarp, na sigla em inglês para High-frequency Active Auroral Research Program), frequentemente citado em boatos e teorias conspiratórias como uma espécie de “causa oculta” para tempestades, furacões ou terremotos ao redor do mundo.

Não se sabe exatamente quem seriam “os caras” que estariam utilizando um projeto de pesquisa estadunidense para molhar bolsonaristas, mas o fato é que a acusação decalca no Brasil um mito já bastante conhecido nos círculos da extrema-direita americana. Dez anos atrás, em 2012, Barack Obama foi acusado de utilizar o Haarp para criar, com fins eleitorais, o Furacão Sandy, que matou mais de 250 pessoas nos Estados Unidos e no Caribe. “Essa chuva e esse tempo não é por causa de aquecimento global ou peido de vaca… São antenas Haarp!”, frase dita pela manifestante bolsonarista no vídeo viral, é a versão mais atual da mesma mentira, que busca atribuir fenômenos climáticos a “planos secretos” orquestrados por inimigos grandiosos.

Ionosfera, militares e tecnologias de comunicação 

Criado em 1990 e atualmente sediado na Universidade do Alasca, o Programa de Pesquisa em Aurora Ativa de Alta Frequência tem como objetivo principal o estudo dos processos físicos que ocorrem nas camadas mais altas da atmosfera terrestre. O foco prioritário está na ionosfera, camada que se inicia em uma altitude de 60 km a 80 km e se estende acima dos 500 km.

O projeto busca entender como as transmissões de ondas de rádio interagem com os elétrons e íons livres ali localizados, o que permite aprimorar sistemas de comunicação e suas aplicações cotidianas como wi-fi, internet móvel para telefones celulares e aplicativos para dispositivos móveis baseados em localização. Segundo o site oficial do projeto, esse tipo de conhecimento é importante para “melhorar os sistemas de comunicação e vigilância para fins civis e de defesa”. O  Haarp foi gerenciado pela Força Aérea e a Marinha dos Estados Unidos até 2014, quando passou a ser coordenado diretamente pela Universidade do Alasca.

A parte de “investigação ativa” do Haarp consiste na utilização de instrumentos para enviar sinais de alta potência para a ionosfera e, assim, observar o comportamento dessa camada da atmosfera e sua interação com ondas de rádio. Esses sinais só podem interferir em uma área fisicamente limitada da ionosfera, justamente a que fica posicionada acima de suas famosas antenas. Além disso, a probabilidade de qualquer evento climatológico ser desencadeado numa camada atmosférica tão alta é nula: as nuvens e correntes de ar são geradas na troposfera ou no máximo na estratosfera, as camadas inferiores da atmosfera, a até 20 km de altitude.

Como quase toda boa mentira, a que envolve o Haarp se baseia em algo que “poderia ser”, eventualmente e em outras proporções, uma verdade. Nesse caso, os boatos sobre o uso político e militar da tecnologia empregada na pesquisa se aproveitam de desconfianças que pairam na sociedade quanto aos objetivos não declarados de projetos de pesquisa financiados por instituições militares. Mas não só: pesa também a histórica e estreita relação entre o desenvolvimento de tecnologias e conflitos geopolíticos — da qual a 2ª Guerra Mundial e a Guerra Fria são os mais conhecidos exemplos. Via de regra, teorias conspiratórias partem de alguma base real para criar e difundir suposições jamais comprovadas científica ou historicamente, apresentadas como “verdades perigosas” que estariam escondidas.

É o que destaca artigo publicado em 2014 na revista Ciência Hoje, rebatendo acusações bastante semelhantes às que circulam nos acampamentos e redes da extrema-direita brasileira. “O que provavelmente gerou desconfiança em relação ao estudo foi o financiamento por instituições militares e de defesa, além do modo de operação (…). Vários artigos científicos resultantes das experiências foram publicados em renomadas revistas de pesquisa, atestando os objetivos do programa. Também é verdade que, desde seu início, surgiram ‘teorias de conspiração’, atribuindo ao projeto eventos observados no planeta, como inundações, terremotos, síndromes identificadas em soldados que atuaram na Guerra do Golfo e outros. Nada disso jamais foi provado, mesmo que de forma superficial, indicando que se trata apenas de temor exagerado em relação a um estudo com características que atraem os formuladores e adeptos dessas teorias”, diz o texto.

Na seção de perguntas frequentes do site do Haarp, há um item dedicado exclusivamente aos efeitos ambientais da pesquisa. Segundo a página, as frequências utilizadas para envio dos sinais à ionosfera não são absorvidas pelas camadas anteriores da atmosfera, aquelas localizadas entre 10 km e 15 km de altitude, e responsáveis pela produção do clima. “Já que não há interação, não há como controlar o clima”, diz o site. (LEILA SALIM)