Obra pode quadruplicar desmatamento na região, aponta estudo da UFMG

O ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, afirmou em vídeo divulgado nesta quarta-feira (16/12), que o asfaltamento da rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho) “vai ajudar a preservar o meio ambiente”. Estudo recente mostra o contrário: que a obra pode quadruplicar o desmatamento na região, uma das mais preservadas da Amazônia.

Após a assinatura do contrato para pavimentação de 52 km da rodovia, Tarcísio escreveu no Twitter: “Iniciamos nossa missão de recuperar uma rodovia já asfaltada na década de 70 com o compromisso de torná-la a maior referência em governança ambiental do Brasil”.

No entanto, um relatório do próprio governo reconhece o impacto da obra, e anuncia como parte da solução o PPCDAm, o plano de combate ao desmatamento que foi engavetado por Jair Bolsonaro. O governo está sendo processado no STF para retomar o plano.

O Ministério do Meio Ambiente tenta há mais de uma década evitar que a BR-319 seja asfaltada sem o cumprimento de uma série de condicionantes ambientais. Os estudos de impacto ambiental da estrada, feitos ainda no governo Lula, mostram que a Porto Velho-Manaus trará muito custo ambiental para pouco benefício social, abrindo o último bloco de florestas intactas da Amazônia a madeireiros e grileiros.

Com o licenciamento do ​”trecho do meio” da estrada – de 405 km, o mais problemático do ponto de vista ambiental – ainda em análise no Ibama, a estratégia do governo é fazer a obra em pedaços. Os 52 km que serão asfaltados ficam no chamado trecho C, e foram autorizados com base em um Termo de Acordo e Compromisso assinado em 2007. Daí a narrativa, encampada por Tarcísio Freitas, de que a BR-319 é uma estrada que “já foi asfaltada nos anos 1970” e estaria sendo apenas “recuperada”.

Veja abaixo estudos e fatos que contrariam o discurso do ministro:

PLANO AMBIENTAL FOI ENGAVETADO

O Relatório de Impacto Ambiental do Trecho do Meio apresentado pelo governo em agosto, apesar de considerar a obra “viável”, reconhece que “em trechos da rodovia onde não existem áreas protegidas os impactos diretos poderão ser mais intensos”. “Sem proteção nessas áreas podem ocorrer ocupações ilegais, com a grilagem das terras, além de desmatamentos ilegais e construção de pequenas estradas não previstas, o que pode resultar no efeito chamado espinha de peixe”, acrescenta.

Como forma de barrar esses impactos, a seção do documento com programas do governo para a região cita o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), que foi engavetado pelo governo Bolsonaro em 2019.

MAIS ACESSO, MAIS GENTE

A BR-319 corta o último grande bloco intacto na Amazônia brasileira. A pavimentação vai estimular fluxos migratórios, expansão de atividades agrícolas, ocupação e valorização de terras, aumentando em pelo menos quatro vezes o desmatamento até 2050, segundo projeção feita por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O estudo avalia taxas de desmatamento nos 12 municípios amazonenses sob influência direta da BR-319.

Para o coordenador da pesquisa, Raoni Rajão, haverá uma “grande corrida do ouro de empreendedores ilegais interessados em expandir a pecuária, tomar terras e até ocupar Unidades de Conservação”. “Essas pessoas vão fazer isso de maneira mais acelerada com a pavimentação”, afirmou à DW.

Unidades de Conservação criadas na região como o Parque Estadual de Matupiri e o Parque Nacional Nascentes do Lago Jari, entre outras, perderiam sua capacidade de evitar o desmatamento. Ao longo da última década, a expectativa de pavimentação já resultou na ampliação descontrolada de povoados como o de Realidade, no município de Humaitá (AM).

As terras indígenas do entorno também estão sob ameaça. O pesquisador do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) Philip Fearnside destaca que nenhum povo indígena foi consultado sobre a obra. A legislação brasileira e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho exigem a consulta prévia aos povos indígenas afetados.

O MAU EXEMPLO DA BR-163

Anunciada em 2006 pela então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, a licença que autorizou o asfaltamento da rodovia Cuiabá-Santarém, a BR-163, veio acompanhada de um “plano de sustentabilidade” avaliado na época como uma “aposta ousada” de que seria possível conciliar meio ambiente e economia. Deu tudo errado. Apesar da criação de Unidades de Conservação no entorno, a região se transformou no epicentro do desmatamento e de conflitos de terra, em razão da ausência do estado. Como escreveu o repórter Simon Romero em 2017, a estrada simboliza o futuro do Brasil.

A 319 NÃO VEM SÓ

A reconstrução vai resultar na abertura de outras estradas e ramais, ampliando o cerco à floresta. O pesquisador do Inpa mostra que já estão sendo construídos ramais ilegais a partir da BR-319, como um aberto em fevereiro na Reserva Extrativista Lago do Capanã Grande. Também há estradas ilegais na direção oposta, partindo de pequenas cidades ao longo do rio Purus. Uma via para ligar Canutama à BR-319 já teria cerca de 40 km de extensão.

O próprio Estudo de Impacto Ambiental (EIA)  destaca que a repavimentação e a operação plena da BR-319 devem estimular a retomada da construção da rodovia AM-366: “Nas condições político-institucionais hoje presentes na região e no país, somadas às iniciativas do Executivo em rever medidas de proteção ambiental e de facilitação do avanço do agronegócio no sul do Amazonas, é bastante factível que o projeto da AM-366 obtenha respaldo político suficiente para sua implantação.”

A AM-366 ofereceria uma via para a abertura de lotes em terras públicas a custo zero. O EIA também menciona a probabilidade de a AM-366 resultar em estradas secundárias (ramais) para fornecer acesso às áreas de produção de petróleo e gás planejadas para exploração no projeto “Área Sedimentar do Solimões”.

É “fictício” acreditar que a BR-319 será um exemplo sustentável, afirma Fearnside, uma das principais referências sobre Amazônia, com mais de 600 publicações científicas.